Advento e adventos, Natal e natais

Texto de  Pe Mauro Odorissio, CP

É do domínio de todos que “advento” significa chegada. Logicamente  refere-se a alguém ou a algo esperado. Mas, a todo discípulo do Senhor, a  palavra tem um emprego bem determinado: refere-se às quatro semanas que  antecedem a celebração do nascimento de Jesus. É um período litúrgico que deve  corresponder a etapas espirituais nos corações humanos, com reflexos no ser, no  agir e na vida das pessoas como tais e como engajadas na sociedade.

Por mais estranho que possa parecer, ignora-se o dia, o ano e a hora do  nascimento do Senhor. A única certeza é que não nasceu no dia 25 de dezembro do  ano escolhido, o 1º da era cristã. Com isso, evita-se a tentação de celebrar  uma data história. O importante é fazer com que os corações sejam desafiados a  penetrar no grande mistério e celebrar o sublime dom do Deus-conosco.

Isso, contudo, não impediu o “surgimento” de natais. Para eles não  faltam “adventos”. Tudo em vista dos “natais” do consumo, do deus-mercado  sempre e cada vez mais voraz. Não é propriamente destes que desejamos falar. Almejamos voltar à fonte, partindo do que aconteceu no coração do Eterno Pai.

Iluminados pela luz divina, os Profetas vislumbraram Alguém que  nasceria de uma Virgem (Is 7,14), um Menino com atributos excepcionais, para  não dizer, divinos. Era uma luz que dissiparia a escuridão que envolvia os que  andavam nas trevas, portadora da alegria que contagia os colheiteiros. Menino  que veio quebrar os jugos que feriam os ombros dos oprimidos, as varas dos torturadores, queimar os coturnos esmagadores, destruir as vestes banhadas em sangue. Menino  chamado Conselheiro admirável, Deus forte, Príncipe da paz (Is 9,1-5).

Quando da chegada do prometido Messias, os Escritores Sagrados se  referiram a ele de modo singelo, diferenciado, exigindo reflexão por parte dos  leitores. Apenas alguns exemplos:

         Gl 4,4          Lc 2,6-7          Jo 1,14          Fl 2,6-
“Ao chegar
a plenitude do
tempo, Deus enviou o  seu Filho que nasceu
de uma mulher…”
“Estando
ali, completaram-se os  seus dias e ela deu à  luz o filho primogênito.
Ela o envolveu em
panos e o reclinou na
manjedoura…”.
“E o Verbo
se fez carne e habitou  entre nós e vimos a sua
glória, glória do
Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.
“Subsistindo
na condição
divina, não reteve para si ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo,
assumindo a condição de servo…”.

O mistério é demasiadamente grande para ser retratado, filmado.  É, então, proclamado para que seja refletido,  meditado e, sobremaneira, contemplado. Afinal, o essencial é invisível aos olhos.  E, os mistérios amorosos de Deus só são contemplados com a profundidade dos  olhos do coração.

Seria enriquecedor considerar os tesouros de cada uma das passagens  natalícias acima citadas. Mais, ainda, confrontá-las entre si. Ordinariamente,  ao se falar do nascimento do Deus Menino, de imediato se evoca Mt 1,18ss e Lc  2,1ss. Aparentemente em estilo mais plástico, parecem exaurir, na simples  formulação, a revelação de mistérios inesgotáveis dadas as suas amplitudes e  profundidades. Mas, para serem mais e melhor vivenciados, eles exigem um mínimo  de aprofundamento. O que não é permitido pela limitação do espaço.

As narrações do nascimento de Jesus, encontráveis em Mateus e Lucas, de  certa maneira, poderiam ser identificas com o que se dá com tantas crianças  carentes que nascem subnutridas e em tugúrios nada superiores à estrebaria de  Belém. Os Evangelhos denunciam essa injustiça ao narrarem o nascimento do  Senhor, mas anunciam, também, um mistério que não pode ser olvidado: um Deus  que se revela salvador. Assim sendo, deter-nos-emos em Gl 4,4.

Das quatro passagens apresentadas, provavelmente é a mais antiga a  falar do mistério natalício. Merece ser mais bem conhecida. O presente tempo do  advento e as próximas celebrações natalícias nos oferecem o ensejo de  refleti-las sob luzes diferentes das habituais.

Em Gl 4,1-7, Paulo também fala do Natal, mas em linguagem sóbria e  questionante. O v. 4 é o ponto alto da mensagem: “quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho nascido de  mulher, nascido sujeito à lei”. Um leitor desavisado pode não perceber que  o texto é natalino.

“Plenitude do tempo”: não é um momento qualquer da história registrável  por calendários, assinalado pelo relógio. Trata-se da concretização de um  projeto salvífico, amoroso, acalentado no coração do Pai, desde sempre. Quando  esse amor divino “ficou maduro” ele se tornou história, em Belém. Mas, história  salvífica. Então, o Pai nos deu o seu próprio Filho que veio ao mundo. E o  tempo se tornou pleno, porque rico de graça e de salvação. Com Jesus deu-se o  tempo dos tempos.

Mc 11,12-14.20-21 ilustra o que é e o que implica a “plenitude do  tempo”. O texto diz que Jesus, sentindo fome, achegou-se a uma figueira  procurando figos. Mas a planta só tinha folhas. Significativamente o  Evangelista ajunta: “não era tempo  de figos”. Assim mesmo, ela foi amaldiçoada e secou. Pergunta-se: o Mestre não  estaria extrapolando em seu poder ao exigir que a figueira lhe produzisse  frutas “fora do tempo”? Não foi injusto, ao amaldiçoá-la? Pretende dizer algo  que vai além de uma compreensão apressada, imediatista? Que lição traz aos  discípulos de hoje?

O Evangelho, que não é uma “historiazinha” infantil, está a nos dizer  que, se Ele foi tão severo com uma planta que não produziu fruto “fora do tempo”, o que não exigirá dos que vivem, agora, “na plenitude do tempo”?!

Gl 4,3-4 diz que éramos escravos sob os elementos do mundo. Mas chegou  o tempo previsto que foi “plenificado”. Como? Pela vinda de Cristo. Ele, que  era Deus desde todo o sempre, assumiu um corpo como os demais humanos. A  encarnação, então, se deu no abatimento: veio de uma mulher e sujeito à lei.
Vir da mulher significa nascer na limitação, na fragilidade: Jó 14,1. Sob a  lei, revela que o Filho de Deus se submeteu às normas exteriores. Trata-se da  lei que o considerou digno de morte, tornando-o um maldito ao morrer na cruz  (Dt 21,22-23). No primeiro caso foi para resgatar o ser humano da escravidão da  lei, e, no segundo, para que todos os nascidos de mulher se tornassem filhos de  Deus.

A submissão de Jesus à lei o levou à morte, mas à morte maldita, como  se viu. Fez-se maldito para nos libertar da maldição (Gl 3,13) para que,  resgatados, nos fosse dada não uma mera filiação jurídica, que em si não levava  a nada, mas à adoção de filhos do Pai Celeste. Assim, vivendo a mais íntima e  profunda comunhão com o Senhor, nos é possível dizer: “não sou eu quem vive, é  Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Esse é o mistério do Natal a ser celebrado.

Respirando o espírito litúrgico da festa e liberados da pressão  mercantilista que a acompanha, é de meditarmos o sublime dom que o Pai nos deu: seu Filho Unigênito. E, por meio dele e do Espírito Santo, podermos invocar o  Criador, clamando: Abba, Pai!”. E, se filhos, sabermos que somos também  herdeiros, portanto, co-herdeiros com Jesus (Gl,4,7; Rm 8,17).

Isso é a Plenitude do Tempo,  momento único a ser vivido, até quando chegar a etapa final e definitiva de  nossa caminhada, na eternidade, quando Deus será tudo em todos (1Cor 15,28).

Concluindo: celebrando o Deus-conosco, pelo Natal, na plenitude do  tempo, não é lícito, ao discípulo, ser como a figueira amaldiçoada pelo Senhor,  a que só produzia folhas. Assim sendo, voltemos ao título desta reflexão: que Natal queremos, a  que Natal nos preparamos. Como está sendo a celebração do advento?

Se assumirmos o proposto pelo Evangelho, as festividades exteriores  terão sentido. Diferentemente, tudo desaparecerá com o apagar das luzes  coloridas, com o findar das músicas de ocasião, e o amargor de perguntar: “e  agora, José, o povo sumiu, a festa acabou. E agora, José?’

Que a plenitude do tempo seja assumida, para que, concretizada seja a  esperada eternidade.