Texto de P. Mauro Odoríssio,CP
No dia 25 de janeiro, a Igreja celebra a “conversão” do Apóstolo Paulo. Ao mundo cristão é dada a oportunidade de refletir sobre uma das cabeças mais abertas da humanidade. Sua passagem pelo mundo deixou marcas indeléveis. O cristianismo e o gênero humano lhe são devedores.
Quando do martírio de Estevão (pelo ano 35), o Apóstolo se encontrava em Jerusalém. Ignora-se o motivo que o levou para lá (At 7,58; 22,19ss). Não lhe era dado participar da execução, embora o desejasse. Sua formação monolítica, a coerência consigo mesmo e com seu pensamento o levariam a tanto. Seja como for, ao menos formalmente, foi um dos executores do Protomártir.
Logo a seguir, ele é apresentado com poderes especiais para perseguir os cristãos (At 8,1ss). Donde lhe veio esse mandato, máxime alcançando moradores além das fronteiras da Terra Santa, na diáspora (At 9,1ss)? Flávio José diz que Júlio César teria dado tal autorização a Hircano II. Esse testemunho é colocado em dúvida; choca-se com o “jus gladii” (= direito da espada) dos romanos. Dominando um povo, eles reservavam a si o julgamento que implicava a pena capital, a condenação à morte. Era um modo de coibir a veleidade e corrupção dos tribunais locais que, fácil e descaradamente condenavam segundo o interesse dos poderosos (Jo 18,31).
Mas, algo “aconteceu” com Paulo, a caminho de Damasco (At 9,1ss). Tal fato, depois da ressurreição de Jesus, foi o mais importante em sua vida: o encontro com Cristo. Essa experiência, por outros chamada de conversão, o fez se sentir uma nova criatura (2Co 5,17). É bem verdade que, falando de sua “conversão”, ele não a descreve como Lucas nos Atos dos Apóstolos. Ao contrário, fala de si como chamado ao apostolado desde o seio materno (Gl 1,13-17).
Por essa razão, muitos estudiosos, em lugar de a “conversão de Paulo”, chamam-na de o “evento de Damasco”. Não sem fundamento, pois o Apóstolo, ao encontrar-se com o Senhor, descobriu que Ele era o cumprimento de tudo o que a lei anunciava. Sentiu que a figura cedia lugar à realidade. Mais uma vez, foi clarividente, profundo, lógico e coerente.
O certo é que ele entrou Saulo no “Evento de Damasco” e saiu Paulo. O ferrenho perseguidor se transformou em ardoroso apóstolo. O inimigo de Cristo se transfigurou num ardente e apaixonado apóstolo do Senhor. O ódio mortal cedeu lugar ao amor abrasador.
O evento de Damasco não é ficção, mas deixa de ser pura crônica. O “acontecimento” foi “explicado” das mais variadas maneiras, não faltando o ridículo, o preconceito, a leviandade: insolação, choque térmico, atrito com o sumo sacerdote que lhe negara a filha em casamento, problema oftálmico, histeria. Coisas de grupos levianos, debochados que encontram seguidores repetitivos e despidos de senso crítico.
As atenções devem se voltar mais para o interior do coração paulino do que para os pormenores “históricos”, para a pura historiografia. Menos, ainda, para o historicismo estéril e esterelizante. Para o Apóstolo algo lhe era certo: fora amado, antes mesmo de ser concebido e, esse amor tão distinguido o segregou para uma missão sublime no tempo. Recebera, antes mesmo de nascer, um especial mandato (Gl 1,11-24).
Lucas descreve a chamada “conversão de Paulo” em forma de história e em três narrações diferentes (At 9,15-16; 22,14-15; 26,16-18). São distintas e até discrepantes entre si, o que causa interrogações e inquietações em leitores menos iniciados nos característicos modos dos judeus escreverem. Quem conhece os diversos gêneros literários bíblicos e seus usos, se sentem convidados a neles descobrir especiais revelações. Os textos são um “prato cheio, suculento e desafiante”. O método histórico-crítico, com a profundidade e seriedade que os caracterizam, explicam o drama de Damasco à luz de paralelos judaicos e helênicos.
É interessante confrontar as três narrações entre si, observando as particularidades:
At 9,1-19 |
At 22,3-21 |
At 26,4-23 |
Uso da 3ª |
Uso da 1ª pessoa singular (eu) |
Uso da 1ª pessoa singular (eu) |
Presença de Ananias: vs. 10ss |
Presença de Ananias: vs.12ss. |
Ananias é ignorado. |
Fala-se em batismo: v. 18 |
Fala-se em batismo: v. 16. |
Ignora-se o batismo. |
Companheiros de Paulo:
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Companheiros de Paulo:
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Paulo ouve a voz e vê a luz: vs. 13-14. |
Só Paulo cai por terra; osdemais se detêm: vs.4.7 |
Só Paulo cai por terra. Nada sediz dos companheiros: v. 7 |
Paulo e os companheiros caem porterra: v. 14. |
Nota-se um progresso de uma narração para a outra. Na primeira (At 9,1-19), Paulo é apresentado como o “convertido” que deixa a provisoriedade do judaísmo, abraçando Cristo até as últimas consequências. Mostra que terminara a Antiga Aliança e que, em Cristo, começava a Nova e Eterna.
Na segunda (At 22,3-21), o então convertido é apresentado como o escolhido por Deus para ser testemunha, no mundo todo, de tudo o que viu e ouviu. Ele, que não conhecera pessoalmente Jesus, mas que passara por especial revelação do Crucificado-Ressuscitado, tornava-se um arauto e testemunha do Senhor que tanto ele odiara.
Finalmente, na terceira (At 26,4-23), o então “convertido” é destinado a ser estemunha, apresentado como o apóstolo dos pagãos. Mostra-se que a mensagem salvífica não era apenas para os judeus, mas para todos os povos. E a ele, mais do que aos outros apóstolos, foi dado levar a mensagem da salvação a todos os recantos do mundo pagão.
Após a “conversão”, o Santo teria partido para a Arábia, voltando de lá para Damasco (Gl 1,16-17). Isto parece contradizer At 9,8-20. A permanência do Apóstolo nesse especial e misterioso retiro seria de 3 anos. O tema é investigado, a começar pela localização e extensão da palavra “Arábia”, e pelo motivo da viagem. Regressando a Damasco, apresenta-se como pregador, suscitando admiração, suspeita, da parte dos discípulos de Jesus, e ódio da parte dos judeus que permaneceram fieis à aliança que caducara (Gl 1,23-24; At 9,21).
A sua aceitação na comunidade cristã não foi fácil. Precisou do aval categorizado de Barnabé que vai buscá-lo em Tarso, para que o auxiliasse em Antioquia (At 11,25-26). As comunidades questionavam se realmente acontecera uma conversão radical num coração marcado pelo ódio.
Com razão hoje se diz que, sem Paulo Apóstolo, o cristianismo estaria longe de ser o que é. Depois de séculos, ele continua sendo modelo de santidade, de pastor, de teólogo, de pensador.
Sua festa é uma ocasião para refleti-lo como modelo de autenticidade e de zelo cristão.