O Evangelista do ano

Texto de Pe Mauro Odoríssio, CP

Na liturgia, os anos se dividem em A, B e C. No primeiro se usa mais o texto do Evangelho de Mateus, nas missas. No seguinte, o de Marcos. No último predomina Lucas. João permeia espaços especiais. Assim, anualmente, em toda Quinta Feira Santa, só ele é proclamado por ser o único que relata o Lavapés (Jo 13,1-15). Essa organização vai propiciar crescimento espiritual se as passagens evangélicas forem bem refletidas, meditadas, assumidas.

27 de dezembro de 2011: na ocasião celebramos o 1º Domingo do Advento quando iníciou um novo ano litúrgico; mais precisamente, o Ano B que irá até o dia 25 de novembro de 2012, festa de Cristo Rei. Portanto, estamos em pleno ano dedicado a Marcos. O texto do IIº Evangelho nos acompanhará e enriquecerá nossos momentos celebrativos, reflexivos, orantes, confraternizantes e operantes. Que seja bem acolhido para nosso crescimento espiritual.

Falamos em IIº Evangelho. Na verdade, entre os quatro existentes, Marcos é o mais antigo. Mateus e Lucas seguem-no, com bastante fidelidade, quer no conteúdo, quer na forma. E até no esquema, na disposição da matéria. Se os textos forem escritos em colunas colocadas lado a lado, poderão ser lidas contemporaneamente, numa “única olhada” (syn opsis). Daqui o nome de “sinóticos”.

Diferentemente de Lucas e de Mateus que nos brindam, cada um ao seu modo, dois capítulos, sobre a infância de Jesus (Mt 1-2; Lc 1-2), Marcos inicia seu Livro apresentando o Senhor já adulto, sendo batizado por João Batista e iniciando o anúncio do Reino de Deus.

O período da pregação de Jesus é dividido, pelo Evangelista, em duas grandes partes. A primeira é o chamado Ministério da Galiléia. Para Marcos (e com ele Mateus e Lucas), o Mestre pregou apenas um ano naquela região. Às vésperas da páscoa Ele se dirigiu a Jerusalém (Judéia) para enfrentar a morte na cruz.

Diferentemente, João mostra que o Senhor pregou três anos seguidos na Galiléia. Chegando a páscoa, Ele se dirigia a Jerusalém e participava das festividades que duravam uma semana. Terminadas, voltava para a Galiléia dando continuidade às atividades missionárias. Assim fez, provavelmente, por duas vezes (Jo 2,23; 5,1). Na terceira ida a Jerusalém foi crucificado (Jo 12,1).

Voltemos ao Evangelho de Marcos. Ele resume a Vida Pública de Jesus num único ano. Esse período se divide em duas partes. A primeira é o chamado Ministério da Galiléia (Mc 1,14-8,26). Mostra Jesus pregando no norte da Palestina, revelando-se taumaturgo: operando todo tipo de sinais ou milagres: curando, ressuscitando, alimentando multidões famintas, acolhendo os marginalizados, consolando. Era seguido por tantas pessoas que não tinha tempo nem para comer (Mc 3,20). Ele adotou, então, a “teologia da glória”, com muitas manifestações visíveis, palpáveis, que entusiasmavam as multidões. E era isso que a multidão queria.

Pouco antes da páscoa, portanto, ao término de sua pregação na Galiléia, interrogou os discípulos para saber que o povo pensava dele. Tomavam-no por Elias, pelo Batista, por um dos profetas, responderam.

Seguramente decepcionado, fez a mesma pergunta aos discípulos. Em nome de todos, Pedro afirmou categórico: “tu és o cristo” (Mc 8,27-30). A resposta é “muito certinha” para ser correta. Na verdade, os discípulos tomavam Jesus como o esperado rei que, no devido momento, assumiria o trono. Tanto que discutiam, entre si, para ver quem seria o maior (Mc 9,33-34).

A compreensão do que se diz pede esclarecimentos. Os judeus esperavam um rei que dominaria toda a terra; logicamente, pagando-lhes pesados tributos. Como os anteriores, antes de subir ao trono, ele seria coroado, ungido e recebia o título de filho de Deus (Sl 2,6-9). Pela unção seria chamado “messias” ( = ungido) cuja tradução em grego é “cristo”. Compreende-se, então, o que passou na cabeça de Pedro quando chamou Jesus de “cristo”; e, na dos apóstolos quando discutiam para ver quem seria o maior no reino.

Uma pequena digressão: só depois da morte e ressurreição do Mestre os discípulos compreenderam o sentido, correto, amplo e profundo de “cristo” e de “filho de Deus”.

A primeira parte do Evangelho, conhecida como Ministério da Galiléia, termina no chamado “Fracasso da Galiléia”. O Mestre constatou que a grande maioria não estava interessada NELE, em sua mensagem, mas nos benefícios materiais auferidos (Lc 17,11-19).

A partir disso Ele tomou a direção da Judéia, no sul, e anuncia três vezes a Paixão (Mc 8,31; 9,31-32; 10,32-34). Começa, a seguir, a segunda parte do Evangelho (Mc 8,27-13,37).

Pedro, pelo grupo, tentou dissuadir o Senhor. Recebeu dura reprimenda: “afasta-te de mim, satanás; não pensas as coisas de Deus e sim, as dos homens” (Mc 8,32-33).

Acontece então, algo inesperado: o Senhor muda radicalmente o seu pensar, a sua pastoral: deixou a teologia da glória, a milagreira, assumindo, radicalmente, a do “Servo de Javé”, a saber, a da “Cruz”. Vai deixando de operar os “milagres” que tanto ou só interessavam à multidão. Intensifica a evangelização e a catequese. Entra em atrito com as autoridades de Jerusalém. Então, foi levado à cruz.

Servo de Javé. Personagem misterioso em Isaias. Ocristianismo o assumiu como o “tipo” a figura do antítipo Jesus Crucificado, como se vê no 4° Poema do Servo de Javé (Is 52,13-53,12). “Não tinha beleza nem formosura… desprezado, refugo… dele se desviava o olhar… ele carregou as nossas misérias…. esmagado por causa de nossos pecados…”.

Jesus que em sua pregação na Galiléia abraçara a “teologia da glória”, a relativiza na peregrinação terrena para assumir a do Servo de Javé, isto, é a Teologia da Cruz que caracteriza o cristão em sua caminhada neste mundo.

Não passou despercebido aos estudiosos como o Pai, ao apresentar Jesus, no batismo (Mc 1,11), assim como no Tabor, a caminho do Calvário (Mc 9,8), tenha se servido das mesmas palavras usadas na apresentação do Servo de Javé: “este é meu servo a quem amo, o meu eleito, a quem quero bem! Pus nele o meu espírito… “ (Is 42,1). Para evitar dúvida, recordamos que as palavras “servo” (`ebed) e “filho” (páis), amiudadamente, são tomadas como sinônimo. Basta confrontar Is 42,1 no Texto Massorético (grego) e a versão grega dos Setenta.

Cristo não somente assumiu a cruz por nós como no-la deixou para ser abraçada todos os dias (Lc 9,23). Não a cruz sinônimo de sofrimento, mas, a portadora da vida, por ser revelação do amor do Pai (Rm 5,6ss) e do Filho (Jo 13,1) pela humanidade. O próprio Senhor disse que, quando elevado (cruz e glorificação), atrairia todos a si (Jo 12,32). Não pelo fato de ser um instrumento de tortura, mas por ser grande epifania do amor divino.

Cruz que implica abraçar a morte, mas a portadora da vida, do amor a ser difundido pelo mundo como o do Crucificado (Jo 15,13).