Texto de P. Mauro Odoríssio, CP
Em artigo para a revista “UNIDADE”, da diocese de São Carlos, recordamos que a Instituição da Eucaristia é ponto alto da Semana Santa a iniciar em de abril. Ajuntamos ainda que, a melhor compreensão daquele mistério exige distingui-lo da devoção eucarística. A Eucaristia é de origem divina e é essencialmente comunitária. A devoção eucarística (horas santas, visitas ao Santíssimo, bênçãos, procissões eucarísticas) é de procedência humana e é mais pessoal, particular.
Com isso, não se afirma, que se excluam. Menos ainda, porém, que se identificam ou que se igualam. A Eucaristia foi instituída por Jesus com finalidades próprias, específicas, como se verá. As devoções surgiram no decurso da história, com a função de afervorarem a piedade cristã.
A Eucaristia foi instituída como: ceia pascal (Lc 22,15), alimento e bebida (Mt 26,26-27)), sacramento escatológico (1Cor 11,26), remissão dos pecados (Mt 26,28), sacrifício (Lc 22,19-20) e memorial (1Cor 11,24-25). Isso tudo implica forte envolvimento e conotação comunitária. Nela não há alternativa: quando não se é comunhão, acontece a excomunhão.
Ambas se diferenciam, entre si, pela origem, pela eficácia, pela finalidade e pela modalidade:
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EUCARISTIA |
DEVOÇÕES EUCARÍSTICAS |
ORIGEM |
De Jesus Cristo na Ceia Pascal |
Humanas, no decurso da história |
EFICÁCIA |
De per si. É um Sacramento |
Do fervor humano |
FINALIDADE |
Acima elencadas. Comunitária |
Afervoramento pessoal |
MODALIDADE |
Realmente presente |
Devocionalmente presente |
A Eucaristia presentiza eficazmente o Senhor. Deixa de acontecer omistério quando há resistência humana. A presença eficaz não ocorre nas devoções eucarísticas; diferentemente, seriam atos mágicos com poder próprio. Seria, ainda, de se considerar que a Eucaristia, como tal, elimina o individualismo, o intimismo, o fechamento pietista e estéril e quejandos. Nas devoções, ao contrário, é de se estar atento para que elas não descambem nesses desvios.
Em nosso estudo, conforme o título acima, desejamos enfatizar o cunho diaconal da Eucaristia. É João quem nos revela esta faceta eucarística. Ele nos mostra que, pela Eucaristia é do comungante ser servidor como o Senhor o foi, e, como Ele, aberto aos irmãos.
É questionante que, precisamente no dia da Instituição da Eucaristia, Quinta Feira Santa, o texto evangélico é o do “Lava Pés” (Jo 13,2-16). Tem-se a impressão de que a escolha não tenha sido feliz. E foi! Ousamos dizer que, a singela e comovente narração
é profundamente eucarística. Mas é necessário saber penetrar na cabeça teológica e mística de João.
O prosseguimento de mossa reflexão pede a antecipação de alguns dados indispensáveis.
Após ter saciado extraordinariamente à multidão, Jesus fugiu ao saber que o queriam rei. Ao ser encontrando, recebeu-a duramente. Não menos duro foi o discurso que fez, a seguir. A certa altura ele se tornou eucarístico: dar seu corpo a comer, o seu sangue a beber. Isso escandalizou a quase totalidade dos ouvintes, a começar por discípulos que, a partir de então, “não andavam mais com ele”. O Mestre, longe de abaixar a tonalidade de suas palavras, dirigiu-se aos poucos que ainda lhe permaneciam fieis: “vocês, também, querem ir embora?” (Jo 6,1-71).
Esse discurso eucarístico pareceu preparar a narração profunda e ampla da instituição da Eucaristia que teria lugar no final do Evangelho. Todavia, ela é, pura e simplesmente, substituída pela do Lava Pés o que, no mínimo, parece ser desconectada com o ambiente. Por que?
Ao ser escrito o IV Evangelho, as comunidades criam na presença eucarística de Jesus e celebravam o mistério. Mas, era ele vivido autenticamente e em profundidade? Ao menos em Corinto as coisas deixavam a desejar. Mais cedo do esperado, antes do ano 57, a celebração da comunidade era uma caricatura (1Cor 11,17-29), era um rito vazio, mentiroso; um anti-rito. Não era o memorial deixado por Jesus, a refeição comunitária, o sacramento escatológico, o compromisso com os irmãos e irmãs, com o mundo que clamava e clama por redenção (Rm 8,19-23). Não se “comungava”; se “excomungava”. Tanto que se “comia e bebia a própria condenação” (1Cor 11,29). A Eucaristia fora transformada em ritualismo alienado. Não era comunhão.
Algo devia ser feito. Então, significativamente, o Evangelista substituiu a narração da instituição da Eucaristia, pela do Lava Pés que, por sinal, não é uma “historinha piegas”, sem sentido. João é muito teólogo para uma brincadeira de mau gosto. Então, precisamos ir além.
Como os demais escritores e até mais do que eles, João supõe perspicácia e profundidade da parte de seus leitores. Cada palavra, cada gesto tem seu significado. Nada é aleatório, fortuito, sem sentido. Apresentamos, em tabela, um confronto significativo e desafiador que ilustrará nosso estudo. São lances da narração do Lava Pés colocados, paralelamente, ao que fez Cristo em prol da humanidade:
Deixar a mesa (Jo 13,4) |
Deixar o céu (Fl 2,6) |
Despir-se do manto (Jo 13,4) |
“Despir-se” da divindade (Fl 2,6) |
Cingir-se com a toalha (Jo 13,4) |
Assumir a natureza humana (Fl 2,7) |
Tomar a bacia com água (Jo 13,5) |
Abraçar a Paixão sangrenta (Fl 2,8; Ap 14,20) |
Jogar água na bacia (Jo 13,5) |
Derramar seu sangue redentor (Rm 5,9) |
Lavar os pés (Jo 13,5) |
Servir o irmão: Jo 13,12ss |
Despir da toalha, tomar o manto, votar à mesa |
Ressuscitar, “reassumir” a divindade, ascenção |
Se João fosse um mero narrador e não um requintado e profundo teólogo, sem empobrecer a narração, diria, simplesmente, que o Mestre lavou e enxugou os pés dos discípulos. Mas, artística e sabiamente, nos presenteou com o texto do Lava Pés. A seguir, como coroa, pôs nós lábios do Mestre o solene mandamento: “Se eu, embora Mestre e Senhor vos lavei os pés também vós deveis lavar uns os pés dos outros”. Aqui está o fulcro da mensagem joanina. Maravilhosa.
O fato de o Lava Pés substituir a narração da instituição da Eucaristia mostra que ambos estão vinculados. Evidencia, ainda, que ela é essencialmente serviço; implica o espírito de diaconia.
Os coríntios celebravam os ritos da Eucaristia sem serem eucarísticos, não eram comunhão (1Cor 11,17ss). No ágape ninguém se interessava pelo outro. É doloroso, mas eram excomunhão.
A narração do Lava Pés mostra o que é ter coração eucarístico. Então é possível:
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receber a Eucaristia e não ser comunhão
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não receber a Eucaristia e não ser comunhão
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não receber a Eucaristia e ser comunhão
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receber a Eucaristia para ser mais comunhão, mais servidor
A Eucaristia implica ser comunhão na terra, da mesma maneira como o Senhor o foi.
Comparemos, agora, o mundo a uma mesa farta com toda variedade de iguarias. Mas se constata que a grande maioria não tem acesso a elas. Uns poucos se assenhoreiam de tudo; os demais são de tudo privados. Falta-lhes o pão da formação, da cultura, da saúde, da moradia, do amor, da casa própria, do trabalho digno. Sem falar do pão corporal e do pão da Palavra de Deus.
Essa é a dura realidade a desafiar os que crêem na Eucaristia, aos que se assentam à mesa do pão. O mistério eucarístico não pode ser transformado em devocionismo piegas, alienado e alienante, em intimismo fruidor que não leva nada a ninguém. Não pode ser uma enganação.
É dos corações eucarísticos concretizarem o preceito de Jesus: “Se eu, embora Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar uns os pés dos outros”.