Cabeças duras

Texto de P. Mauro Odoríssio,CP

Estamos em Atos dos Apóstolos 7,51-8,1. No texto, Estevão se dirigia, ontem, aos líderes religiosos presentes e aos seus antepassados. Hoje, porém, é a nós que ele fala como porta voz do Espírito Santo. As palavras são duras; mas é bom sermos sacudidos para que saiamos de nossa possível letargia, de uma pseudo vida religiosa, estagnada, farisaica, que não soma e só compromete: “Homens de cabeça dura, de coração e de ouvidos incircuncisos. Vós sempre resistis ao Espírito Santo…” (At 7,51).

Comentando o texto, podemos recordar a catilinária de Cícero contra Catalina (Até quando, ó Catalina, abusarás de nossa paciência… por quanto tempo ainda… até que modo…?). Pensamos, ainda, nas duras palavras de Paulo contra os judeus (Rm 2,17-24), discursos esses, por sinal, contemporâneos. É um gênero incandescente, um “pontapé na canela”, como usamos, às vezes, nas celebrações. É preciso que todos assumamos o apelo feito a nós, no dia de hoje.

De início, confessamos que sempre nos esforçamos em não sermos “ventoinha”: estar ao sabor do último vento a soprar, do último livro lido, da última opinião a aparecer na praça, da última manchete da televisão. Mas, também, evitamos ser como os “empacadores”, os teimosos, os desprovidos de inteligência, os preguiçosos em pensar o novo, os refratários às mudanças sadias. Sempre achamos ridículos os que marcam passo para não pensar, não refletir. Não crescem e difi-cultam o crescimento.

As palavras de Estevão calaram em nosso coração, na nossa celebração. Sentimo-nos questionados a rever a nossa caminhada pessoal. Fizemos essa proposta a todos. Foi recordado, de início que, conforme o Senhor, quem com Ele não recolhe, dispersa (Mt 12,30).

O discurso do Santo foi dirigido, ontem, às autoridades judaicas. Hoje, são apelos feitos a nós. Tanto que as Escrituras não são um simples livro de história: são palavra viva e fonte de vida, e hoje é uma “catilinária” feita a nós. As cabeças duras, os ouvidos e corações incircuncisos de ontem, podem ser um retrato dos nossos, agora. Isso, para que deixemos de ser uma caricatura de religiosos, os que, possivelmente, não são frios, mas que estão longe de serem quentes. Sendo mornos, como disse o Senhor, venhamos a provocar o vômito de sua boca (Ap 3,15-16).

No seu precioso e insubstituível documento sobre a Evangelização, Paulo VI questiona: ou a Palavra de Deus perdeu o seu vigor, ou somos nós que, mortos espirituais, estamos estáticos, estagnados, numa vida religiosa de exterioridade, de teatralidade, de improdutividade, sem mudanças perfectivas. Cadáveres ambulantes. Iludimo-nos com um praticismo religioso que não nos levam a nada. Assim, nossa vida compromete o nome do Senhor: “Por causa de vocês, o nome de Deus é blasfemado entre os pagãos” (Rm 2,24). Aliás, esse tipo de vida religiosa fora denunciada por Jesus: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas. Vós sois semelhantes a sepulcros caiados: belos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos e de imundície” (Mt 23,27).

Por intermédio de S. Estevão nos é feito um veemente apelo: mudar de vida, mudar de cabeça, deixarmos de ser como um animal empacado e empacador. Sem inteligência. Passarmos por uma conversão de coração e de ouvido. É questão de acolhermos o apelo do Espírito Santo e dei-xarmos que Ele nos transforme a cada dia.

Tomamos a liberdade de recordar o que dissemos a alunos, há muito tempo, após comentário aprofundado de determinada passagem bíblica exigente: que as Escrituras nunca tivessem seus “ângulos arredondados”, amaciados. A Palavra de Deus é sempre questionante, uma espada de dois gumes (Hb 4,12-13). Deve ser assumida como tal. E concluímos: não é como uma cerveja que desce redondo.

Não façamos moucos os nossos ouvidos ao Espírito Santo (Sl 95[94],7-11).