Texto de P. Alcides Marques, CP
A Bíblia traz uma passagem bastante significativa sobre o que é ser pai. Está no Segundo Livro de Samuel (18-19). O texto relata que Absalão, filho de Davi, quis tomar-lhe o poder, destronando-o. Durante o combate, Joab, um dos generais de Davi matou Absalão. E, cheio de alegria, mandou dar-lhe a notícia: “Absalão, teu inimigo, aquele que queria destruir o teu poder e tomar o teu lugar, foi morto. Estás livre de teu inimigo”. Mas, para surpresa de todos, Davi não ficou alegre e sim muito triste. Davi chora amargamente e diz: “meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão, porque eu mesmo não morri em teu lugar?”.
O que aconteceu foi que o rei Davi fez naquele momento a experiência do caráter incondicional da paternidade. Porque o pai de um filho ou de uma filha nunca deixará de sê-lo. Mesmo que seus filhos o reneguem e mesmo que ele renegue seus filhos, ele continua sendo pai. Dentro do seu coração dilacerado, através desta emoção sentida diante de seu filho morto, Davi descobre que Absalão será sempre seu filho. Pai é para sempre.
É assim quer devemos entender Deus. Jesus nos revelou que na raíz da existência de todos nós, para além de nossos pais biológicos ou adotivos, existe um amor incondicional que vem Daquele que é a fonte, a origem de tudo. Somos filhos e filhas desse Amor Incondicional, e somos para sempre. E a palavra que Jesus vai empregar é Abba. Abba quer dizer papai, paizinho. É a palavra da criancinha que balbucia tentando dizer a palavra pai.
Foi Jesus quem empregou Abba pela primeira vez para se dirigir a Deus. É uma palavra que não se encontra no Antigo Testamento e implica, verdadeiramente, uma qualidade nova de relação com Deus à qual Cristo nos convida e que seria inimaginável para os doutores da Lei da época. Abba nos torna demasiadamente próximos da fonte de nossos desejos mais autênticos. Abba nos liberta da condição de objetos e nos coloca na condição de sujeitos, ou seja, agentes de nossa própria história.
Em vários momentos Jesus utiliza a palavra Abba. Por exemplo, quando está exultante de alegria. “Abba, eu te louvo porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Também quando devolve a vida a Lázaro: “Abba, eu te agradeço por me teres ouvido” (Jo 11,41). Abba é a razão da alegria, da felicidade, da vitória da vida e do amor. Os pobres e pequeninos não são objetos, mas sujeitos da história. Lázaro não é mais um objeto (corpo inerte), mas sujeito. Quem sustenta e garante tudo isso? Abba-Pai.
Jesus chama a Deus de Abba também na hora do sofrimento: “Abba, afasta de mim este cálice! Contudo não seja como eu quero, mas como tu queres” (Lc 22,42). É bom saber que Jesus não ama o sofrimento. Ele nos convida a enfrenta-lo, a nos curar e a libertar a humanidade dele. O que ele nos ensina aqui é que, quando nada mais pode ser feito, devemos ter a consciência de não sermos objetos deste sofrimento. O ser humano é sempre maior do que os seus sofrimentos. Abba indica que não podemos nos reduzir ao tamanho dos nossos sofrimentos.
Há ainda um outro pedido: “Abba, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Compreende-se que Jesus, até o último instante permanece sujeito. Ele decide perdoar. Jamais se transforma em objeto. Até no momento final é sujeito: “Abba, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
O Pai é nosso. A oração de Jesus nos coloca no caminho da fraternidade verdadeira. Todos nós somos sujeitos, pessoas, responsáveis pelo mundo e pela história. O nosso Pai está no céus não no sentido de que está ausente da nossa história, mas no sentido de que está presente de uma forma diferente. Não se trata de um espaço físico, mas de um espaço de plenitude e de luz. Espaço esse que pode ser percebido no silêncio interior.
O nome Abba, o nome do Pai, não é uma simples palavra, mas uma realidade a ser experimentada: a de permanecer sempre sujeito e de sempre voltar-se para a fonte de nossos desejos mais verdadeiros. É um longo trabalho a realizar em nossas vidas. Talvez uma missão.
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