Vocação e vocacionados

Por P. Mauro Odorissio, CP

A Bíblia fala de vocacionados como Abraão, Moisés, os Apóstolos e outros mais. Todavia, é de se descobrir, no chamamento deles, a nossa vocação e a riqueza do chamado.

De uma maneira ou de outra, o que existe passou por um chamado: o mundo ao ser criado, a casa ao ser construída, o feijão ao ser preparado segundo esta ou aquela receita… As coisas, ou foram criadas do nada, ou foram alteradas, elaboradas, confeccionadas em existências diferentes. Tudo recebeu especial “chamamento”, especial “vocação”. E vão se realizando.

Nesse “chamamento” universal e generalizado, sobressai o do ser humano, Todos recebem uma vocação comum: serem santos como o Pai Celeste (1Pd 1,16). Mas há uma mais dialogante e distinta, mais personalizada e em vista do Reino. Esse chamado merece reflexão. O Evangelho nos propicia essa ocasião ao narrar fatos aparentemente genéricos, pontuais (Lc 9,57-62).

Antes de tecermos considerações sobre os exemplos proporcionados pelo texto acima sobre a vocação e os vocacionados, é de se ter presente que eles vão além de dados históricos. Não devem ser refletidos como tais, e sim como catequéticos. Ficamos na simples afirmação; diferentemente dever-se-ia fazer um amplo confronto entre o texto de Lucas e os dos outros Sinóticos. Portanto são para serem refletidos e não catalogados como dados de crônica social.

Lc 9,57-58: “Enquanto caminhavam alguém disse a Jesus: ‘Eu te seguirei aonde quer que vás’. Jesus respondeu: ‘As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos. Mas, o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça”.

O Mestre e os seus discípulos estavam a caminho de Jerusalém, depois do fracassado ministério da Galiéia. Ele ia ao encontro da cruz. O pretenso vocacionado permanece anônimo; nada é dito de sua reação ante a resposta de Jesus. É importante confrontar os verbos correlatos caminhavam e seguirei, assim como as comparações entre as raposas que têm tocas e pássaros que dispõem de ninhos para abrigos, com o Mestre carente de pedra onde repousar a cabeça. Desse paralelismo antitético se nota que o “auto vocacionado” não tinha condições de abandonar tudo e transformar-se em missionário despojado para seguir, verdadeiramente, Jesus.

Para o Mestre, o discípulo vocacionado e com o coração aberto ao Reino, deve estar aberto a rupturas. Terão menos segurança que os animais que dispõem de tocas e de ninhos.

Lc 9, 59-60: “Depois, disse a outro: ‘Segue-me’. Este respondeu: ‘Permite-me que eu vá, primeiro, enterrar o meu pai´. Jesus respondeu: ‘ Deixe que os mortos enterrem os seus mortos; tu, porém, vai e anuncia o Reino de Deus ”.

Era dos judeus prestarem honra aos falecidos, mas com a devida moderação (Eclo 38,16-24). Assim mesmo, a ordem de Jesus parece desconcertante. Todavia, a palavra “morto”, do texto, tem duplo sentido: um real, a indicar um falecido, e o outro, figurado: refere-se ao pecador (Lc 15,24.32). É este o sentido que ocorre no texto. A ordem do Mestre, então, indica o radicalismo no chamamento: o vocacionado deve superar, quer os deveres religiosos impostos pela Lei (sepultar os mortos), quer os liames afetivos familiares. Apegar-se a um desses deveres em detrimento do seguir o Mestre é morrer: é ser morto que sepulta morto. As palavras de Jesus são aforismo, isto é, ensinamento ou máxima moral. Por meio dele o Senhor praticamente diz: em lugar de “ir” ao cemitério, “vá” anunciar o Reino. Isto é mais importante do que aquilo.

Lc 9,61-62: “Um outro lhe disse: ‘Eu te seguirei. Porém, deixa-me antes despedir-me dos meus familiares´. Jesus, a isso respondeu: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está preparado para o Reino de Deus ”.

O mundo familiar, para o Mestre, não é o único valor, nem o máximo. O Reino de Deus a tudo supera. A sentença de Jesus é clara: olhar para trás impede encarar o resto do trabalho a ser feito. Contudo, a afirmação do Senhor faz lembrar a vocação de Eliseu. Elias o viu arando e o chamou ao profetismo. Todavia, este suplicou que o permitisse ir despedir-se dos pais, no que foi atendido (1Rs 19,19-21). O Mestre, ao chamar, exige resposta pronta.

Portanto, as narrações evangélicas não são crônicas, mas, revelam a natureza do chamamento e a exigência que implicam. Tudo em vista do Reino de Deus e dos valores eternos.