Texto de P. Mauro Odoríssio, CP
Na sexta-feira santa celebramos a Paixão do Senhor. Se ela deve ser meditada sempre, sobremaneira na Semana Santa, essa meditação deve ser mais intensa, profícua e aprofundada. O título que encabeça esta reflexão não é um equívoco; foi assim escrito pensadamente. Mas, precisamos nos explicar. Isso pede alguns dados preliminares.
Jamais será sobejamente afirmado que a Morte e a Ressurreição, nas Escrituras, constituem um mistério único. Rm 4,35 as coloca como sinônimo no ser e no produzir o fruto, a ponto de afirmar que (Jesus) “foi entregue (= morto) por causa de nossos pecados” (para a remissão deles), e que foi “ressuscitado para a nossa justificação (ou redenção)”. Confrontemos o texto:
Jesus foi entregue para o perdão dos pecados | Jesus foi ressuscitado para nossa justificação |
Essa unidade clara foi “separada” por antigo escritor eclesiástico (Ambrosiaster). Afirmou que fomos remidos em virtude dos tormentos atrozes sofridos por Jesus (categoria dos méritos), enquanto que a ressurreição estava para a credibilidade, para que crêssemos na redenção operada na cruz. A equivocada colocação trouxe seriíssimas conseqüências: a ressurreição passou a ser pouco considerada e a paixão, como sofrimento, absolutizada.
Jesus sofreu tormentos atrozes da sua prisão até a sua morte. A esses sofrimentos todos chamamos de paixão. Só para diferenciar, tomamos a liberdade de usar letras minúsculas.
É de se enfatizar: a redenção não dependeu da intensidade dos sofrimentos do Mestre. Paixão não são apenas as torturas sofridas por Jesus. Da ênfase dada a elas surgiu o “dolorismo”: insistência nos pormenores e na amplidão dos sofrimentos do Mestre e em devoções vinculadas aos instrumentos de tortura: cravos, coroa de espinhos, coluna da flagelação, etc. Enfatizando as dores do Mestre, livros e pregações suscitavam histeria nos ouvintes ou leitores, para delírio mórbido dos escritores ou pregadores. Tudo num contraste chocante com o texto evangélico sempre sóbrio, respeitoso: Jesus foi açoitado… coroado de espinhos… crucificado… Para este significado usamos a palavra “paixão”.
Outro sentido mais rico, mais profundo, e a ser cada vez mais descoberto e vivido chamaremos de PAIXÃO. Esses dois conceitos não se excluem; mas, também não se identificam. Não devem ser tomados redutivamente.
Que é paixão? O dicionário define: “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez da razão”. Então, trata-se de amor que foge do controle. O apaixonado parece ficar cego, surdo, parece perder o uso da razão. Fecha os olhos e vai.
Rm 8,32 diz que o Eterno Pai não poupou o próprio Filho, mas o entregou por nós. Pouco antes afirmou que ninguém dá a sua vida por uma pessoa má. Possivelmente alguém é capaz de se sacrificar por uma pessoa boa. E acrescenta: quando éramos pecadores, Cristo morreu por nós. Acrescenta, ainda: quando éramos merecedores do ódio, por “amor”, ele morreu por nós.
Então, o Pai “apaixonado” por nós, e em nosso benefício, não poupou o próprio Filho. Segundo o nosso modo de falar, chegou a “perder o uso da razão”. Que o Filho morresse na cruz para a salvação dos demais filhos. A esse tipo de amor chamamos PAIXÃO.
Acontece que o Filho, por sua vez, tendo amado os seus que estavam no mundo, também amou sem medida, amou “até o fim”, expressão que tanto pode significar até o último segundo de sua existência humana, como até o máximo de sua potencialidade amorosa (Jo 13,1). Trata-se, também, de PAIXÃO.
Então, paixão, acrescida de PAIXÃO, além de revelarem os incomensuráveis sofrimentos de Jesus, manifestam especialmente o amor sem medida, da parte do Pai e do Filho.
Esse amor é proposto como modelo para o amor humano: abrir-se para o bem, para a plena realização de todos. Compreende-se, daqui, o alcance, a amplidão, a profundidade e a altura da proposta de Cristo: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. E, para que não pairassem dúvidas, acrescenta: “Não existe amor maior do que dar a vida por quem se ama” (Jo 15,12-13).
Isso fez S. Paulo da Cruz afirmar: a Paixão de Jesus é a maior manifestação do amor divino.
Que as celebrações desta semana, nos levem à descoberta e à vivência do verdadeiro amor. Amor do qual o mundo é tão carente.