Chegada ou partida?

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

Como é encantador e tranqüilo o mundo das crianças! Aceitam facilmente que o “em cima” começa a partir da cabeça e o “em baixo” tem inicio depois da sola dos pés. A “direita” toma a direção da mão com a qual se come, e a esquerda, o rumo da mão que lava a direita. Pacífico!

Depois as mandam para a escola onde as fazem ver que, ao darem meia volta, o que era direita, vira esquerda e a esquerda se transformem direita. Fazem-nas aceitar que a terra é como “uma bola” cujas partes superior e inferior se chamam pólos norte e sul. Então, os moradores de uma dessas regiões têm as solas dos pés voltadas para as solas dos pés dos da outra. Mais: as crianças aprenderão que, ao andarem para algum lugar, o que era aqui vira ali e o ali passa a ser aqui.

Assim, as crianças grandes devem se questionar se a Ascensão do Senhor, a subida gloriosa dele para o céu, foi para cima ou para baixo. Fácil: para cima dizem os esquimós do pólo norte. Certo! Então, que dirão os habitantes do sul da Patagônia que moram no outro extremo da terra?

Esses questionamentos não são para confundir e sim, para “desconfundir”, para desmitificar.

Lucas coloca a festa da Ascensão no fim de seu primeiro livro, o Evangelho, e no começo do segundo, a saber, Atos dos Apóstolos. E é para ensinar e não para confundir.

Em artigo anterior sobre a Ascensão apresentamos uma tabela na qual se confronta as duas narrações feitas por Lucas em seus dois livros. Tomamos a liberdade de reapresentá-las:

EVANGELHO DE LUCAS

ATOS DOS APÓSTOLOS

A Ascensão se deu no mesmo dia da ressurreição (Lc 24,1-50). A Ascensão aconteceu quarenta dias depois da ressurreição (At 1,3).
Em Betânia, a três quilômetros de Jerusalém (Lc 24,50). Em Jerusalém, no monte das Oliveiras, ao lado da cidade (At 1,12).
Os discípulos são conduzidos a Betânia (Lc 24,50). Os discípulos estão reunidos com o Mestre (At 1,6).
Ausência de elemento teofânicos (manifestações da atuação de Deus). Presença de elemento teofânico: nuvem, (At 1,9).
Ausência de anjos. Presença de dois homens vestidos de branco (At 1,10).
Ausência de questionamentos. Os anjos questionam os discípulos e falam do retorno de Jesus (At 1,10-11).
Jesus abençoa os discípulos (Lc 24,50). Ausência de bênçãos
Volta a Jerusalém e permanência no templo (Lc 24,52-53). Volta a Jerusalém e ida ao cenáculo onde permanecem (At 1,12-13).

São evidentes os contrastes entre as narrações contidas nos dois livros. Todavia, o Escritor as colocou assim, conscientemente. No primeiro deles, o Evangelho, Lucas apresenta Jesus abençoando os discípulos, se despedindo deles; e era o dia da Ressurreição. No segundo, a Ascensão se deu quarenta dias depois da Ressurreição. Os discípulos que continuavam olhando para o alto são questionados pelos os anjos se não “tinham nada que fazer”, que partissem para o apostolado.

Resumindo, no Evangelho se fala de Jesus fisicamente com os Apóstolos, evangelizando, catequizando, vivendo com eles. Terminada sua missão na terra, regressa para o seio do Pai. Em Atos dos Apóstolos se afirma que o Mestre estará sempre com eles, mas, espiritualmente (Mt 28,20). Que assumissem, a partir de então, a missão de apóstolos. Em outras palavras, que assumissem a maioridade apostólica no mundo carente e desafiador. Que contassem com a assistência do Senhor.

Para Jesus, a Ascensão foi o ponto de chegada; para os discípulos, de partida.