Panem et circenses

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

Sinto-me em dívida com a página da Paróquia e me pergunto: que escrever, agora? De um lado, vejo tantas pessoas se agitando ante as festas juninas. Doutro, há agitações de indignados que não suportam mais os desmandos e a injustiça reinantes. Ambos os temas mereceriam considerações; mas, outros as farão com maior “engenho e arte”.

Consultei, então, o texto do Evangelho de domingo próximo (Lc 9,18-24). Nele, vejo Jesus, sem demagogia ou enganação, propondo a cruz aos seus seguidores. Não oferece “panem et circenses”, pão e espetáculo, como faziam os imperadores romanos, ludibriando e mantendo submisso o povo. Dons aparentemente gratuitos, mas que custavam caro. Agora vejo pessoas conscientes gritando contra o circo chamado Copa que é indústria a beneficiar grupos e não o povo. Pantagruelicamente essa política devora verbas a dano da saúde, da educação, da moradia, etc. No tal esporte tão dispendioso, o povo se torna mero expectador e não participante. Não visa, propriamente a “mens sana in corpore sano”: a mente sã em corpo sadio. Que os clamores levem ao bom caminho.

Voltemos ao Evangelho do próximo domingo. O “texto” está num “contexto” a ser conhecido. Ambos em vista do “pretexto”.

Jesus pregara na Galiléia beneficiando multidões: curou, alimentou… Ao término das atividades no norte da Terra Santa, interrogou os discípulos para saber o que dele pensavam as pessoas. Tomavam-no como simples profeta. Não se interessavam por ele e por sua missão salvadora. Queriam, mesmo, os benefícios que ele prodigalizava: curas, bênçãos, favores. E nada mais. O Mestre, a seguir, questiona os discípulos, que não foram mais felizes. Viam, em Jesus, o futuro rei forte, poderoso e explorador, conforme a expectativa dos judeus (Sl 2,6-9). Eles, então, dada a proximidade com o Mestre, se beneficiariam do poder e da riqueza.

Esse é o contexto da passagem estudada. É conhecido como o “fracasso da Galiléia”.

A partir daqui, tem lugar o texto: Jesus toma a firme decisão de ir para Jerusalém (Lc 9,51). Antes começa a anunciar que lá seria crucificado (Lc 9,22). E, a caminho, insiste outras duas vezes a morte na cruz (Lc 9,43-45; 18,31-34). Chegando na Judéia, o Mestre praticamente deixou de operar milagres; insistiu na catequese de seus seguidores, entrou em choque com as autoridades judaicas. Resumindo, antes ele assumira a teologia da glória; agora, a da cruz com a mensagem inerente.

Os contexto e texto se abrem ao pretexto: assumir a cruz e sua mensagem na terra, enquanto se peregrina para a vida eterna. A seqüela de Jesus implica abraçar o patíbulo, por sinal, odiado pelos judeus, pois lhes era sinal de maldição divina; quem morresse no madeiro era tido como maldito de Deus (Dt 21,22-23). É de se imaginar o espanto dos discípulos ao ouvirem tão odiada condição: abraçar todo dia a cruz para poder ser de Jesus e segui-lo (Lc 9,23).

Só depois da ressurreição os discípulos, não sem dificuldade, compreenderam que o Senhor se fizera maldito para libertar a todos da maldição (Gl 3,13).

Mas, que é abraçar a cruz? Na eidética, no conhecimento profundo das coisas, a dor é desafio, é corpo estranho: constatamos que existe e como é. Mas permanece indefinida. Tudo fazemos para eliminá-la, mas com êxito relativo. E, por ironia, não podemos dizer que ela é maldade em si; tanto que às vezes é benéfica: por meio da dor diagnosticamos que em nós existe mal maior que nos levaria à morte.

O cristianismo não reflete o mal como entidade. Todavia, o propõe como meio para exercitar nosso autocontrole; é o caso da ascese (1Cor 9,24-27); ou ainda, para difundir o bem. O Apóstolo, por Cristo, não fugia da luta, não recusava trabalho, mas se abria a todo tipo de sofrimento (2Cor 11,23-33), para que fosse fecundo, benéfico, sem descambar no exagero do masoquismo ou do hedonismo. Exemplo mais eloqüente de sofrimento fecundo e nobre é o do parto (Jo 16,21).

Então, o cristianismo propõe a cruz, ou o sofrimento, como ascese, o esforço para se atingir um bem maior; ou para a concretização da obra redentora de Cristo, a redenção plena, total, universal. Trata-se, portanto, de sofrimento fecundo em vista da vida e da vida em plenitude.

Concluindo: a teologia cristã tem que ser a da cruz redentora até a comunhão definitiva quando tudo cessará, a não ser o amor pleno e eterno.