Texto de P. Mauro Odorissio, CP
Para que fique claro e inteligível o título que encima o artigo, tomo a liberdade de completá-lo: “timeo Dominum transeuntem et non plus revertentem. Se ainda não ficou suficientemente compreensível, procuro colaborar, traduzindo-o: “temo o Senhor que passa e não volta mais”. Na hipótese de não estar ainda deglutível, não é de se penitenciar: entender gênio é problemático! E S. Agostinho, autor da sentença, era um deles. “E ponha genialidade nele!”… Ele sempre exige muito de seus leitores. Mas é fonte deliciosa, rica e inesgotável!
No fundo, o Santo imaginava Jesus passando pela porta trancada do seu coração, porta que só se abre por dentro. E, ao passar, pulsaria suavemente pedindo acolhida para um diálogo profundo, amoroso, de coração a coração. “E não abrindo as portas de mim mesmo ao Mestre”, pensava o Santo, “poderia ser aquela a última oportunidade a mim dada. Ele iria embora e não voltaria mais! E se minha salvação dependesse precisamente daquela derradeira oportunidade, daquele único momento especial de graça?!”.
Este preâmbulo todo é em vista da festa que celebramos no dia 9 de agosto: Santa Tereza Benedita da Cruz. Prefiro chamá-la simplesmente de Edith Stein.
Assistente do fenomenólogo e original Husserl, foi a primeira mulher a defender tese em filosofia, na Alemanha. Pensadora crítica e profunda, requisitada por diversas cátedras, não tinha o perfil de pessoa piegas, crédula. Ao contrário: judia, contrariando a formação religiosa familiar, cedo abraçou o ateísmo. Que seria de esperar dela?
Certa ocasião, precisava de silêncio, tempo e isolamento para os seus estudos e investigações; aceitou o convite de se isolar na casa de um casal amigo que deixara, nas férias, a residência à disposição dela. Na biblioteca da família, aleatoriamente escolheu um livro: Autobiografia de Santa Tereza. Esperar-se-ia que a nossa catedrática descartasse a obra de imediato. Contudo…
Sim, Edith foi lendo, foi se interessando, foi descobrindo que a ciência puramente noética, a puramente reflexiva, não é absoluta e única. O conhecimento mental que especifica o ser humano, não alcança e não responde a tudo. Existe o cordial que merece ser ouvido, pois ele descortina horizontes insondáveis pela pura razão. Seguramente se recordou do “Le coeur a sés raisons que la raison ne connait point” do conhecido Pascal. Ela ia reconhecendo que o coração tem razões que a própria razão ignora. E a jovem filósofa, sacerdotisa dessa razão, com crescente voracidade, lia capítulo depois de capítulo, sentindo sua mente iluminada e seu coração inflamado. Assim chegou à última pagino do livro. Ainda com o volume aberto nas mãos, exclamou: “aqui está a verdade!”. E ela tinha condições de assim falar, de distinguir a verdade ontológica, da lógica, da moral.
A jovem catedrática procurou o Pe. Erich que não se deixou levar por fácil entusiasmo. Só depois de longa evangelização e catequese a batizou. Indignação na Família Stein. Mais tarde. Edith resolveu deixar a cátedra, a carreira, o futuro. Tudo em vista de algo maior e mais profundo: entrou no mosteiro do Carmelo. Ao menos por algum tempo seus familiares lhe viraram as costas.
Com o nazismo em efervescência, as superioras acharam prudente transferi-la para outro mosteiro carmelita no exterior. Mas, a Holanda foi invadida pelos nazistas que não ignoravam quem era Edith Stein e qual era o seu paradeiro. Foram buscá-la em sua solidão, em sua clausura. Na ocasião ela escrevia um tratado sobre a teologia da Cruz. Levaram-na para o famigerado campo de concentração de Auschwitz onde foi martirizada no dia 9 de agosto de 1942.
Tudo começou porque a Santa soube aproveitar o Senhor que passava e que, delicadamente, por meio das páginas da autobiografia de S. Tereza de Jesus, bateu à porta de seu coração. E ele encontrou Edith vigilante, atenta. Daqui a razão de ser do título deste pequenino artigo: “Temo o Senhor que passa”. Sim, a nossa Santa é modelo para todo discípulo e discípula, pois Cristo, com sua graça multiforme, sempre e continuamente, se achega sereno, até sorrateiro batendo à porta dos corações de todos. Com Edith Stein foi por meio de um livro espiritual.
Que o Senhor encontre os seus servos e servas como Edith: atentos e vigilantes (Lc 12,35-38). Assim a graça,sempre fecunda, produzirá maravilhas!