Como num espelho

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

Para o Apóstolo, nossos corpos são templos vivos de Deus, morada do Espírito Santo (1Cor 3,16-17). Como tais, são dignos de toda veneração, merecedores de todos os cuidados. Mas, ele sentia que o corpo carrega o peso de ser originário da terra. Assim sendo, algo nele o leva a regressar ao pó donde veio (Rm 7,15-24). Contudo, sente em si existir, também, o “sopro divino” recebido na criação. Dessa maneira, misteriosa força interna o faz abrir os corações ao alto (Gn 2,7). Por isso mesmo se vê atraído pelas alturas, porque o Crucificado, ao morrer, agora em especial criação, lhe “entregou o espírito” (Jo 19,30).

Contudo, Paulo não ignorava que o corpo material, mesmo nobre e elevado, sendo matéria cerceia, limita. Então, afirma que caminhando iluminados pela fé, animados pela esperança, na caminhada vislumbramos a Deus, mas indiretamente, como que por meio de um espelho (2Cor 3,18). A esperança na qual se vive não é plena luz; mas, também não é absoluta escuridão. De modo especial com o coração se descobre um além mais concreto do que se imagina.

Paulo contata que muito pouco “conhecemos” de Deus. Contemplando as obras da criação, chegamos a um mínimo de sua cognoscibilidade, como sua bondade, sua eternidade, (Rm 1,19-22). Nem falamos, neste momento, da revelação bíblica.

Como com todas as coisas, para conhecer Deus necessário seria “defini-lo”. É da definição, como diz a palavra, colocar limites, e o Senhor é infinito, não tem limites. Então, nosso conhecimento, aqui, é como que por um espelho.

Há dias, em nossa leitura espiritual, o autor falava algo que não nos era novidade. Naquela hora nosso coração estava mais sensível e receptivo, e ficamos considerando longamente o que dizia. Afirmava que os humanos têm duas faculdades ativas principais: uma, a de “conhecer” intelectualmente. A outra, a de amar; ajuntamos que também é especial faculdade cognoscitiva. Por meio dela se conhece não menos aprofundamente do que a outra. É marcante a constatação de Pascal: o coração tem razões que a própria razão desconhece. Este “conhecimento” dificilmente se coloca ao serviço do mal como pode acontecer com a primeira faculdade.

Mas, voltemos ao livro de leitura espiritual: o autor ajunta, e com carradas de razão, que pela primeira faculdade, Deus permanece sempre incognoscível, desconhecido. Ao passo que, pela faculdade de amar ele é plenamente “compreendido” no seu todo. E, com cada qual ele mantém um diálogo amoroso que só os amantes compreendem; e, para a felicidade deles, esse diálogo não tem fim.

Recordamos com que carinho, com que entusiasmo, no passado procurávamos adentrar no íntimo de Deus considerando-o como ato puro, sem potências, no qual a essência e a existência se identificam. Vibrávamos com as nossas “conquistas”. Temos presente a exultação vivenciada quando, ao menos na nossa compreensão, vislumbramos o “nóesis noéseos” de Aristóteles, isto é, que Deus é o pensamento de seu pensamento, sua auto-consciência.

Acreditamos que, depois de tais “conquistas”, deixávamos tudo na gaveta ou na estante, como quem tivesse refletido a batatinha. E íamos para a vida de todo dia. Deus, contudo, continuava ao nosso encalço oferecendo um profundo diálogo de amor. E é certo que, se nossa cabeça estava razoavelmente saciada em nossa superficialidade, o coração continuava faminto e sequioso.

Nosso autor fala em “nuvem do não-saber”. Preferimos a imagem da nuvem ou da coluna de fogo que, no deserto revelava a presença de Deus e, ao mesmo tempo, o ocultava (Ex 40,36-38). É o diálogo dos amantes: quando imaginam ter tudo revelado ou captado na revelação amorosa, descobrem que outros mistérios ocultos esperam o devido momento de se manifestarem.

A vida religiosa mais madura vai além do conhecimento dos mistérios de Deus; implica a vivência amorosa. Compreende-se, assim, como os grandes santos diziam que a oração vocal, assim como a meditação, são a oração dos imperfeitos. A dos perfeitos começa com a contemplação. No caso, a fantasia e a cabeça se acalmam e o coração toma o seu devido espaço. Começa, então a acontecer a verdadeira vida religiosa.