Texto de P. Mauro Odorissio, CP.
A palavra inquieta. Demitologieren significa “desmitificar”. Possivelmente ainda estamos no escuro. Pode significar destruir ou explicar mito. Cremos que ainda caminhamos muito pouco. Mitos são narrações antigas que tentam explicar realidades ou fenômenos não suficientemente conhecidos. Se bem investigados e interpretados, facilitam a compreensão de mensagens riquíssimas. Mas, se tomados ao pé da letra atravancam a caminhada científica.
Partamos das imagens ou pinturas de Jesus. A quase totalidade, incluindo crucifixos, o “apresenta” bastante “apresentável”: barbas feitas, cabelo arrumado, roupa impecável, limpinho, sem falar nas aureolas, luzes. Elas podem representar a devoção dos fiéis; jamais a realidade de um homem paupérrimo, sofrido, ou de Deus encarnado. São úteis para a piedade; mas podem facilitar a criação de mitos dúbios a respeito da divindade ou da humanidade do Senhor.
Jesulogia é o tratado que investiga Jesus como ser humano. A Cristologia considera o Verbo Divino que assumiu carne (Jo 1,14). Elas não se excluem, mas se completam, se enriquecem.
Imaginemos o Mestre em seu contexto vital: homem pobre, tisnado pelo sol, castigado pelas caminhadas no deserto, tentado, com fome e sono. Precisou mendigar um copo da água (Jo 4,7) a que lhe faltava para a higiene pessoal. Jamais vestiu roupas finas (Mt 11,7-8). Perfumes, cremes?!
Antevendo as duras conseqüências da encarnação, grupos dos primeiros cristãos passaram a afirmar que o Senhor só tinha “aparência humana”. Eram os docetas (de “dokeo” = “ter aparência de…”). A afirmação implica quatro heresias: contra a encarnação de Jesus, a maternidade de Maria, a morte na cruz e a ressurreição. Transformavam Jesus num “faz de conta”.
Em aula no nosso curso bíblico paroquial surgiu a questão “jesulógica”: Jesus, como homem, tinha consciência de ser Deus?
Hb 4,17 é fundamental para se compreender a amplidão e a profundidade da Encarnação. Diz que o Senhor se fez em “tudo” semelhante a nós, “menos no pecado”. Sabemos das nossas potencialidades, mas, também de nossas carências e limitações. Nascemos carentes, crescemos acompanhados e terminamos dependentes. E foi o que aconteceu com Jesus: nasceu e cresceu paupérrimo (Mt 8,20), perseguido desde o nascimento (Mt 2,13). Mesmo sendo Filho de Deus, precisou de um lar para “crescer em sabedoria, graça e estatura (Lc 1,80; 2,22). A nenhum mortal é dado possuir, na terra, a contemplação beatífica. No caminho peregrino da fé, a visão e o conhecimento beatíficos ocorrem na limitação do espelho (1Cor 13,12). Logo, nem a Jesus “que se fez em tudo semelhante a nós, menos no pecado” foi dado tê-los. Diferentemente, ele seria carente de fé e de esperança, presentes na terra e a desaparecer no céu onde só restaria a caridade.
Fp 2,6-8 vai além: o Senhor, divino, se despiu da divindade, “esvaziou-se” ou “aniquilou-se” (ekénosen), assumiu ser humano, humilhou-se e se tornou obediente até a morte de cruz.
Morte na cruz? Sim! A morte dos “malditos de Deus” (Dt 21,22-23). Assumiu ser “maldito de Deus” para nos libertar da maldição (Gl 3,13). A carência de conhecimento e de visão beatíficos do Senhor, na terra, nada era em vista do estado da maldição que abraçou.
São impactantes as palavras de João ao dizer que o Verbo se fez “carne” (Jo14 1,14), em lugar de afirmar que se fez “homem”. A palavra carne (antropós sarkikós = homem carnal) é “bomba” nas Escrituras. Falar que o Verbo se fez “homem” já seria arrasador. Fazer-se carne é estar aberto ao pecado. Daqui em Hb 4,7 se afirmar que Jesus se fez igual a nós, menos no pecado.
Perante mistério de tal monta, S. Paulo da Cruz se perguntava: tudo isso para que? E prontamente, respondia: “tudo isso por mim!”. Então assumiu e vivenciou, ao máximo, o mistério do amor revelado pelo Crucificado, o “maldito de Deus” que, como tal, nos liberta da maldição.
Estas reflexões não podem ficar no mero “academicismo” se fechar em puras abstrações e considerações estéreis. Certos “mitos” devem ser superados. A realidade deve ser encarada. O mistério, mesmo se chocante, deve levar ao amor manifestado pelo Senhor.
É o que devemos nos propor em nossa caminhada quaresmal: refletir e assumir o amor sem medida do Senhor que se fez em tudo semelhante a nós, menos no pecado. Isto é desmitificar!