Texto de P. Mauro Odorissio, CP
A última celebração da Vigília Pascal deve ter marcado os corações dos participantes. Os diversos lances se sucediam eloqüentes, mesmo em sua singeleza. A igreja, dominada pelas trevas, recebeu o Círio Pascal aceso e se ouviu a proclamação: “a luz de Cristo”. Foram acesas as velas dos responsáveis pela liturgia. A seguir, em ondas crescentes e contagiantes, eram acendidas as dos demais participantes. Houve partilha de luz, de comunhão e, mais vigorosamente foi proclamado: “a luz de Cristo”. Havia confronto antitético, mas eloqüente entre “luz-trevas”.
Destacada, também, foi a proclamação da Palavra; as leituras, ricas e enriquecedoras, se sucediam. O ardor crescia nos corações como aconteceu com os discípulos de Emaus (Lc 24,32).
Para esclarecer o título que encima a nossa reflexão, destaquemos a bênção da água batismal e os três momentos quando o Círio Pascal era nela mergulhado, com as solenes proclamações: “Nós vos pedimos, ó Pai, que, por vosso Filho, desça sobre toda esta água a força do Espírito Santo”. Com ela a Comunidade seria aspergida e quatro irmãos, batizados.
Ao administrarmos o Sacramento, tivemos a oportunidade de refletir, com a Comunidade, que o Batismo evoca o “passar pelas águas a pé enxuto”. A expressão é bíblica e pede aprofundamento. Ela evoca o Sl 114(113A),1-5: “Quando Israel saiu do Egito… o mar viu e fugiu, o Jordão voltou atrás… Que tens, ó mar, para fugires assim, e tu, Jordão, para voltares atrás?”.
Ordinariamente, todos se lembram dos judeus atravessando o mar Vermelho a pé enxuto (Ex 14,19-30); poucos se recordam de algo semelhante quando da entrada do povo santo na Terra Prometida (Jos 3,14-17). É de se reter: ao sair da escravidão e ao entrar na liberdade, houve “travessia a pé enxuto”. Sabiamente os mistérios foram unificados no Salmo acima citado.
Para melhor compreensão, urge enriquecermo-nos com novos dados. As Escrituras usam a imagem mitológica do Leviatã, o monstro do caos primitivo, da desordem; ele habitava nas águas profundas (Is 27,1). Era a imagem do anti-Criador, do mal, cujas cabeças seriam esmagadas por Deus (Sl 74(73),13-14. As águas fendidas do mar Morto e do rio Jordão, para que o povo passasse, indicavam, reciprocamente, a vitória contra a escravidão e a conquista da vida nova.
Agora o cristão, quer como pessoa, quer como povo, passou, não tanto pelas águas do mar Vermelho, como os judeus, sob a direção de Moisés (1Cor 10,1-12), mas pelo batismo sangrento da Paixão de Cristo (Rm 6,3-5). Não sem significado, o Mestre chamou sua imolação na cruz de Batismo (Mc 10,38; Lc 12,50). Nela há morte e ressurreição: passagem de um estágio mortal ou de inanição para o de vida, e de vida menos perfeita para a mais aperfeiçoada. É ir saindo sempre e cada vez mais da terra da escravidão e ir adentrando, progressivamente, na da liberdade plena. O Batismo, então, não é tanto um ato, uma celebração, mas processo constante, diuturno, dinâmico e libertador; até a comunhão plena e definitiva (1Cor 15,28).
Desafiadoramente, até a derrota final, o Leviatã procurará se aninhar não tanto nas águas profundas, mas na profundidade dos corações, da vida social, política, econômica, etc. O príncipe deste mundo precisa, por Cristo, com Cristo e em Cristo, passar por derrotas sucessivas, até a vitória final de Deus, do bem (Jo 12,31-32; 16,11).
O Batismo, bastante recordado na Vigília Pascal, acontece não tanto na água e sim no sangue redentor de Cristo. Trata-se, portanto, de luta sem quartel contra o Leviatã aninhado em tantos lugares, em tantas organizações, em tantos corações. É dos cristãos irem sempre para as águas profundas. Enfrentar o mar borrascoso, agitado pelo monstro que habita em suas entranhas.
Compreende-se, então, por que os batizados deveriam acontecer nas Vigílias Pascais. Compreende-se, ainda mais, como nelas acontece a bênção da água batismal. Compreende-se, finalmente como, havendo ou não batizados em solenidade tão destacada, a Comunidade festiva renova seus compromissos batismais.
E, terminando a celebração, todos voltem com os corações retemperados, para continuar “passando a pé enxuto”, pelas águas, ou mais precisamente, pelo batismo redentor que acontece, de verdade, no sangue de Cristo.