Texto de P. Mauro Odorissio, CP
O Bíblico de Roma jamais dispensava aulas. Exigia o máximo dos futuros exegetas. Tratava-os com severidade marcial: “o questa minestra, o questa fenestra”: ou toma esta sopa ou caia fora por esta janela.
A Igreja estava sob o impacto da morte de Pio XII que a dirigira por décadas. Os cardeais, em conclave, estavam prontos para eleger o próximo Papa. A expectativa era tanta que o Bíblico chegou a dispensar a última aula para que os seus pudessem ver a “fumata del mezzo giorno” (a fumaça do meio dia). Depois de dias indo ao Vaticano e só ver a “fumata nera” (fumaça preta = sinal da não eleição do papa), resolvi voltar para casa. Era 28 de outubro de 1958. “Vou cuidar de minha vida”, pensei.
Porém, ao sair da faculdade, o entusiasmo dos colegas me contagiou e fui para a “Piazza”. Fiquei mais do lado esquerdo não distante da Basílica. Mas, controlando a célebre chaminé da Capela Sistina.
Num grupozinho formado na hora, estava um recruta do exército italiano. Falávamos de tudo e de nada. De repente, emuníssono, eclodiu o grito: “É Biaaancaaa!!!” (É branca). Pulos, palmas e choros. E a fumaça saia dançante da chaminé. Os sinos da Basílica bimbalhavam festivos. Aguardava-se o “habemus papam” (temos papa). O recruta interrogava: “e se for o Card. Roncalli?! Vão precisar de uma batina branca especial. Ele é muito gordo!”. Eu nem sabia da existência desse cardeal. O jovem soldado fora seu coroinha e torcia por ele. Na hora me pareceu estranho um papa gordo; estava acostumado com Pio XII magro, esguio.
Quando as portas do “balcone” da Basílica se abriram, ribombaram brados e vivas. Solene e pausadamente o Camarlengo proclamou: “Annuntio vobis gaudium magnum. Habemus papam”. Silêncio de segundos; impressão de séculos. “Anuncio a vocês grande alegria. Temos Papa: sua eminência (e seguiu a ladainha de títulos que parecia não ter fim): o Card. Roncalli, que assumiu o nome de JOÃO XXIII”.
Deixo ao leitor imaginar o que aconteceu na Piazza e com o militar: “ diventò pazzo”; enloqueceu!
Voltei para casa pensando nos “miei affari”, nas minhas obrigações. Talvez murmurasse: “tutto finito, sara um papa come gli altri, ed Il mondo continuerà a girare”. Sim! Teríamos um papa como os outros, e o mundo continuaria a girar. O mundo continuou a girar; mas ele não foi um papa como os outros!
Meses depois aconteceu a reunião do clero romano no nosso convento passionista. João XXIII foi ao encontro dos seus padres. O superior ficou desesperado: “como receber o papa?”. Mas o Vaticano providenciou tudo. João XXIII fez questão de se encontrar, também, conosco, passionistas. O encontro se deu na capela interna usada por nós universitários. Tudo sem formalidade e na maior fraternidade.
Para escândalo dos subservientes “cultuadores” das normas e leis asfixiantes do Vaticano, e desespero dos responsáveis pela segurança do Papa, João XXIII transgredia esquemas rígidos para estar mais perto do povo que, em sua intuição passou a chamá-lo de “Il Papa buono”. Era il caro Nonno sempre vicino ai suoi nipotini; sim, o avô querido ao lado dos netinhos. Rabinos agradeciam-no porque, quando núncio na Turquia, chegou a fornecer atestados falsos de batismo para salvar crianças judias do extermino nazista.
Para espanto da cúria romana, na Basílica de S. Paulo, ao celebrar a festa do Apóstolo, anunciou de surpresa, o Concílio Vaticano II. Ele queria ouvir, dialogar com a Igreja toda, e não só com os que o rodeavam e o tentam-no controlá-lo. Queria, ainda, dialogar com o mundo, com a ciência, com a técnica e, principalmente, com os marginalizados, com os sofridos, com os sem voz e vez. Isso não agradava grupos. Com oposições e boicotes, o Vaticano II aconteceu, trazendo novas luzes e novas esperanças para a Igreja.
Muitos passos foram dados, portas foram abertas, leigos foram assumindo sua missão. Contudo, João XXIII morreu sem poder codificar e concretizar as decisões conciliares. Lamentavelmente, o Concílio ficou nas mãos pouco abertas às novas realidades. E a boa semente ficou hibernada.
Mas, hibernar não é morrer. Hoje, novos ventos começam a desgelar o ambiente glacial. Anuncia-se nova primavera na Igreja. É o vento e o fogo iluminador e acalentador do Espírito Santo (At 2,1-21).
“Desibernemos” o apelo de S. João XXIII ao querer a Igreja oxigenada, ventilada e aberta às novas necessidades, às novas missões: “ aprite le fenestre”: abram as janelas à ação do Divino Paráclito!
SÃO JOÃO XIII, ROGAI POR NÓS, ROGAI PELA IGREJA!