Trindade e comunidade

Texto de P. Alcides Marques, CP

O ser humano é um ser social. Social não só porque precisa das outras pessoas para sobreviver (padeiro, médico etc.), mas também porque o envolvimento com outras pessoas é a condição essencial para que seja ele próprio. “Ninguém é uma ilha”, dizia Tomas Merton. Você precisa ser você mesmo, mas precisa também das outras pessoas. A doutrina trinitária nos ajuda a compreender o valor da nossa singularidade e o valor da comunidade em nossas vidas. Infelizmente, não estamos acostumados com tal visão, pois a doutrina trinitária acabou se transformando numa mera fórmula – um Deus em três pessoas -, sem maiores consequências em nossas vidas concretas.

A Sagrada Escritura não dá definição filosófica nem faz reflexão teológica sobre a Santíssima Trindade: limita-se a revelar a existência e a ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Afirma explicitamente que são três, mas jamais admite o politeísmo. O cristianismo é monoteísta: só há um Deus. A partir do Novo Testamento, é Jesus Cristo o critério último e decisivo pelo qual os cristãos irão expressar a sua maneira de crer em Deus. Veremos que Jesus continua e rompe, ao mesmo tempo, com o monoteísmo judaico.

Jesus nunca pretende ser o Deus. O artigo definido “o” antes do termo “Deus” tem grande importância no texto grego do Novo Testamento, pois é utilizado para expressar aquele que o antigo Israel denominava Iahweh. A esse Deus, Jesus chama Abba, Pai (cf. Mc 14,36). Portanto, todas as vezes que no Novo Testamento aparecer a palavra Deus, nós devemos subentender a primeira pessoa da Santíssima Trindade, o Pai.

O Novo Testamento salienta a unidade entre ambos, não só na ação, mas também no ser. A tradição joanina é a que mais caminha nessa direção. Logo no início do IV Evangelho tal unidade é explicitada. “No princípio era o Verbo. E o Verbo estava com Deus (Pai). E o Verbo era Deus (sem artigo)” (Jo 1,1). A passagem de Filipe é de uma especial clareza: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Também o apóstolo Paulo tem idêntica convicção. Afirma que Jesus tinha a mesma condição de Deus (sem artigo) e podia igualar-se a Deus (cf. Flp 2,6). A carta aos colossenses acrescenta que Jesus Cristo é a “imagem (visível) do Deus invisível” (Col 1,15) e que nele “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Col 2,9).

A mesma unidade entre o Pai e o Filho pode ser estabelecida com o Espírito Santo. No Evangelho de João, Jesus apresenta-o como uma “volta sua” depois da morte: “vou e volto a vós” (Jo 14,28). Poderíamos dizer que ao falar do Espírito Santo não apresenta outra realidade senão a sua presença. Nesse mesmo sentido, as cartas de Paulo referem-se várias vezes ao Espírito Santo como “o Espírito de Jesus” (cf. Flp 1,19; Ef 3,16) e igualmente como “Espírito do Pai” (cf. 1 Cor 6,11; Ef 4,30).

O Novo Testamento, no entanto, não só salienta a unidade entre os três, mas também que existe uma relação eu-tu, ou seja, um não é o outro. O Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai. O Filho se dirige ao Pai como uma pessoa se dirige à outra. “A ti (Pai) tudo é possível: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). Da mesma forma pode-se dizer com relação ao Espírito Santo. “É de vosso interesse eu parta, pois se eu não for; o Paráclito não virá a vós” (Jo 16,7).

Parece óbvio que a fidelidade ao texto bíblico nos obriga a falar de uma unidade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo (posteriormente entendida como natureza, essência, ser). Parece igualmente óbvio que tal unidade se dá a partir de uma relação perfeita entre três identidades distintas (posteriormente entendidas como pessoas). A vida ordinária da Igreja levou mais de 300 anos para explicitar toda a riqueza de significado dessas afirmações.

Qual é a experiência humana que melhor traduz como um pode ser três e como três pode ser um? Sem dúvida, a experiência do amor. A fórmula de “Clemente Trindade” nos apresenta a unidade do ser e a unidade do agir como resultados do amor de três que decidem, desde a eternidade, ter tudo em comum, ser cada um para os outros. “… nem confundidos (como se fossem a mesma pessoa) nem divididos (como se não houvesse unidade)…”.

O que a Trindade realiza, desde a eternidade, é a utopia, o sonho de uma vida em que todos sejam respeitados em suas diferenças (na sua singularidade) e onde exista uma comunhão tal que gere uma unidade para além das diferenças. A Trindade revela que tal sonho é possível. Mais ainda, desafia cada pessoa a trabalhar cotidianamente para que a vida sempre caminhe em direção a tal meta. É isso o que deveria acontecer em nossas famílias, comunidades, nações e humanidade.

            Não temos um Deus solidário, mas um Deus solidário, um Deus-nós como todos nós gostaríamos de ser e, quem sabe, trabalhamos por ser. Apesar de todas as nossas imagens deformadas de um Deus solitário, o Deus que Jesus nos revelou é, na sua essência, um Deus-comunidade.