O santo calote

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

De antemão pedimos licença e desculpas aos caros leitores, pois nos adentraremos em assunto que não é o nosso forte: a etimologia. Contudo, ousamos confessar que não somos completamente ignaros. Amiudadamente essa ciência nos foi necessária em nossas atividades acadêmicas.  Então, com a anuência tolerante dos que nos lêem, ousaremos “viajar etimologicamente”.

Sabemos que as línguas, assim como as palavras emergem do povo em suas necessidades de comunicação. Depois os especialistas organizam as coisas mais sistematiza e ordenadamente. Nós, ao contrário,  quase que aventureira e gratuitamente, imaginamos que “calote” tenha vindo de “calo”. Ele é duro, insensível e nos faz ver “estrelas” até em céu ensolarado. Como judia!

Assim o caloteiro: insensível, golpeia a vítima e permanece alheio ao sofrimento de quem, crédulo, o socorreu em real ou hipotética necessidade.  Pouco ou nada lhe diz a dor que ocasionou.

No momento, não temos presentes os que deixam de saldar dívidas por absoluta incapacidade de ressarcir, mas apenas os verdadeiramente desonestos e mal intencionados; os ladrões, numa palavra.

Ao entardecer deste domingo (23º do Tempo Comum – Ano A), sentimo-nos iluminados pela mensagem bíblica da missa. E, neste espírito, tomamos a iniciativa de nos dirigir aos caros leitores.

As leituras do dia enfatizam a vida comunitária. Partimos do texto do Evangelho (Mt 15,20) no qual Jesus nos diz que, onde dois ou mais estiverem reunidos em seu nome, aí ele se faz presente. Com essa presença acontece a Igreja, pois o estar do Senhor jamais é meramente estático e sim, dinâmico, amalgamador. Não se trata de presença maior, mas também não é menor das outras. Insistamos: o que poderia ser apenas ajuntamento de pessoas se transforma em comunhão.

As demais leituras seguem o mesmo diapasão: a importância da vida comunitária que implica amor, fraternidade, auxílio mútuo e até mesmo a correção fraterna (Ez 33,7-9).

Esta passagem do Primeiro Testamento é enriquecida pela de Rm 13,8-10. Nela o Apóstolo insiste que todos os mandamentos se sintetizam num único: o amor. O próximo deve ser amado da mesma maneira como nos amamos a nós mesmos. Acrescenta ainda que o amor, além de evitar a prática do mal contra o próximo, propicia a “plenificação” da lei. Então, a prática religiosa, por mais perfeita que seja, sem o amor não passa de praticismo sem vida, inútil. Sem ele, o interior da ação fica descaracterizado, pois é ele ou a sua ausência que torna um ato bom ou mau, benévolo ou malévolo. É ele que dá sentido, que caracteriza a moralidade do agir humano. E o ato, mesmo em sua singeleza, quase que despido de sentido, se torna impregnado de Deus.

Depois, na passagem se recomenda que ninguém fique devendo algo a alguém. Contudo, esta lei formulada tão apodítica, férrea e irretocavelmente  se abre para inesperada exceção. É questionador que, de imediato, se abra em  nova direção.

Examinemos, inicialmente, a lei lapidar: “Não fiquem devendo nada a ninguém”. Tem-se a impressão de que não haverá espaço para exceção. Contudo, a seguir emerge o inesperado “a não ser”. Haveria espaço para o “calote”, para a dívida?  Sim, mas para o “calote santo”, a saber, para “o amor mútuo”. Leiamos, agora, o que nos diz o versículo em questão: “Não fiquem devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo”.Afirma-se que, no seio da comunidade, os irmãos devem ser sempre e cada vez mais “caloteiros” no amor. Por mais que se amem, mais se sintam na necessidade de amar. Por mais que amem, mais se sintam devedores de amor.

Talvez estejamos forçando um pouco “a barra” na argumentação. Mas, a grande mensagem deixada pelo Apóstolo é que nunca nos imaginemos quites, por mais que vivamos o amor comunitário. O amor fraterno deve sempre estar aberto, quantitativa e qualitativamente.

Então, que o Senhor plasme os nossos corações segundo o coração amoroso que nos amou sem medida e desde toda a eternidade. E que sempre nos sintamos em condições de amar sem fim.