Eu vos darei um coração de carne

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

Em nosso currículo acadêmico, mais de uma vez lecionamos Profetismo. Conseqüentemente, Ezequiel nos é relativamente conhecido. Não temos condições de imaginar quantas vezes, no longo decurso de nossa vida ministerial, oracional, professoral e reflexiva, contatamos o texto. Sabemos, ainda, da importância do destacado Profeta num dos momentos mais cruciais da história do povo judeu.

Há pouco mais de hora, no Ofício das Leituras, portanto em momento oracional comunitário, foi-nos dado proclamar Ez 10,18-22; 11,14-25. Sempre zelamos em não identificar os momentos de oração, de reflexão, com o de estudo. Se estudar a Bíblia nos é enriquecedor, muito mais nos é acolhê-la à luz da fé. Então, adotamos metodologias diferentes para os distintos momentos. Num, o nosso objetivo é mais a verdade, o conhecimento e, no outro, preponderantemente é o amor que emana de Deus.

O certo é que estamos sob o impacto da mensagem que nos marcou. Desejamos, então, partilhar com os leitores algo dos sentimentos partilháveis. Antes, porém, urge conhecer um tanto o contexto.

Antes da destruição de Jerusalém (587 aC), o jovem profeta Ezequiel foi levado, com outros judeus, para o cativeiro em Babilônia. Lá, em êxtase, contemplou o Senhor se retirando do templo profanado, impossibilitado de abrigar o Deus “três vezes santo” (Is 6,3). Como coabitar com a profanação? Como estarem lado a lado a luz e as trevas? O Senhor, ao abandonar o lugar considerado santo, vai aos exilados, na Babilônia, às margens do rio Cobar onde estava Ezequiel. Ai instala sua habitação provisória.

Todavia, em Jerusalém a impiedade campeava. Os ímpios se julgavam seguros e impunes. Achavam que nada lhes aconteceria. Mas os olhos perscrutadores de Deus os controlavam (Ez 11,1-13).

Neste ínterim, com os demais exilados, Ezequiel ouviu o Senhor condenando os judeus de Jerusalém que se imaginavam santos, dignos de lá estar. Pecadores, diziam, eram os que estavam no exílio onde curtiam as conseqüências de seus pecados. Não eram, então, autênticos herdeiros da Terra Santa; estavam no exílio por não serem merecedores de habitar na Pátria dada por Deus.

Mas, na verdade, o Senhor os abandonara e transferira a sua habitação entre os  judeus exilados.

Além dessas palavras consoladoras, Javé ordenou a Ezequiel que acrescentasse outras carregadas de esperança: os dispersos entre tantas nações seriam congregados e retornariam para Israel que seria purificada e teria os ídolos removidos. Isso parecia quimera, sonho irrealizável. Mas, não para Deus!

O retorno planejado por Deus, porém, não seria apenas “geográfico”: sair de um lugar e ir para outro, ou deixar as terras estrangeiras como a opressora Babilônia e regressar para a Terra Santa. Do povo que se contaminara com a idolatria babilônica ser-lhe-ia arrancado o coração de pedra e, em seu lugar, pulsaria um de carne. Os exilados seriam animados e vivificados por um espírito novo. Dessa maneira, com maior fidelidade guardariam os preceitos do Senhor, acatariam com maior zelo o querer divino. Com isso, restabelecer-se-ia o casamento rompido entre Javé e os judeus. Dessa maneira eles seriam o povo de Deus e Deus seria o do povo.

Nos judeus de então, o chamado povo sinal, é de nos descobrimo-nos a todos nós, quer como pessoas, quer como coletividade. Quanta infidelidade, quanto desvio! Carecemos de verdadeira conversão, de transformação a partir de dentro. Nada de maquiagens! Dos peitos devem ser arrancados os corações de pedra, corações a serem substituídos pelos de carne. E, mais do que isso, um novo espírito deve animar o ser de cada um, o ser da comunidade para que, de novas entidades proceda vida religiosa mais autêntica, a que não se identifique com meras exterioridades.

A leitura matutina nos foi enriquecedora.  Agora, boquinha da noite, ainda impregnados pela mensagem da manhã, partilhamos o alimento espiritual com os nossos leitores. E que do imo peito clamemos uníssonos e sempre: “dai-nos Senhor, o vosso Espírito”. Assim, poderemos, no devido momento, tomar posse da Pátria definitiva.