Je suis Charlie, mas nem tanto

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

O título que encima nossa reflexão pede algumas considerações que o aclarem. Diferentemente poderia deixar a impressão de estarmos “em cima do muro”.

É-nos fundamental: repudiamos toda e qualquer violência ou assassinato, originem-se de onde vierem, acobertados ou não com rótulos dogmatizantes como o da liberdade de expressão. Nem por isso seriam menos criminosos. Repudiamos a matança feita com bombas, assim como as perpetradas com a pena, com a língua e até mesmo com charges destemperadas e detonadoras. Afinal, nossa vida não é somente a física, mas também a moral e a intelectual.

Acreditamos que vem a propósito da a ária “A calúnia”, da notável opera “O Barbeiro de Sevilha”. Nesta, a calúnia é descrita como um ventozinho, uma aragem suave que, devagarzinho, devagarzinho e em sussurros vai crescendo, sibilando, penetrando nas cabeças das pessoas. No fim transborda e explode como um tiro de canhão.  E o pobre caluniado, arrasado, pisoteado sob o flagelo público se considerará feliz com a morte. Afinal, ele fora anteriormente assassinado na sua honra por línguas venenosas.

Sempre o assassinato se origina no coração, assim como a calúnia. Depois, se concretiza no mau uso das bombas, das palavras escritas ou orais e das charges mal usadas. O que seria bom, em si, se torna mortífero, assassino. Esses recursos jamais poderão ser colocar acima do bem e do mal. Ordinariamente, estão nas mãos dos poderosos que os utilizam por interesses escusos. Mesmo se acobertados sob falsos mantos, como títulos atraentes, zelos piedosos, defesa de princípios, de dogmas, de falsa liberdade de expressão, jamais ocultarão seus malefícios. Liberdade é a possibilidade de fazer o que se deve e não o que se quer; jamais está acima do bem ou do mal.

A risibilidade, isto é, o riso, é um atributo racional. Os irracionais não riem; é dos humanos serem risíveis. Contudo, a risibilidade deve ser impregnada pelo “noético”, isto é, pela razão. No mínimo seria patológico gargalhar ante uma cena de sofrimento. É lamentável quem, carente de inteligência quer, a todo custo, chamar a atenção sobre si. É capaz de ir a extremos sem medir consequências.

Também o “estético”, isto é a beleza, a harmonia, deve se fazer presente na risibilidade. Diferentemente, o pseudo “artista” rompe o equilíbrio se sua obra, o senso de proporção, servindo-se de qualquer recurso para suscitar gargalhadas perante plateia menos exigente e que tudo aceita acriticamente.

Finalmente, o artista deve ser impregnado também pelo “ético”. Os animais não distinguem o limite entre o bem e o mal. O artista despido da moralidade pode fazer opções desastradas: absolutiza-se e se coloca acima do bem e do mal, insensível a danos e prejuízos causados.

Se impregnada pelos noético, estético e ético, a arte de rir forma os costumes, elucida, educa. Todavia, se procurada a qualquer custo, pode descambar no ridículo (gargalhar pelas cócegas produzidas em si mesmo) ou na destruição assassina de valores e pessoas. Então, mais do que de leis ou normas, a arte, seja ela qual for, deve partir das fontes vitais (noética, ética e estética) para não se nivelar às bombas assassinas.

Daqui então, dizermos que “je suis Charlie, mas nem tanto”. A verdadeira arte jamais deve se colocar ao serviço da destruição, do desvalor. Diferentemente nem seria arte por ser desarmonia, desequilíbrio. Além disso, ela não pode se absolutizar como valor supremo, ou, o artista não pode assumir função tão dogmática e absolutista.

É preciso respeitar a pessoa, como disseram, com carradas de razão o cantor e o poeta, vivendo tempos difíceis: “Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente é diferente”.

Sim, é possível o “je suis Charlie”, mas não absolutizado. O artista deve se despir de pretensões dogmatizantes.

Assim se salva a pessoa e a arte.