Texto de P. Mauro Odorissio, CP
Ao recitar a Liturgia das Horas, Vésperas ou Oração da Tarde, senti-me sobremaneira tocado pelo Sl 137(136),1-6. Detive-me no texto e preferi sacrificar a “quantidade”, em benefício da “qualidade”. Deixei-me ser conduzido.
Confesso: por instantes avassalou-me o inolvidável “Va pensiero” da ópera Nabuco, de Verdi. Imaginei os escravos judeus às margens dos rios da Babilônia, desafiados pelos algozes a cantarem cânticos da terra distante e saudosa. “Como seria possível cantar um cântico sagrado em terra estrangeira, opressora?”. Lamentosos, eles esconjuravam a desdita: “Se eu te esquecer, Jerusalém, que fique paralisada a minha mão direita; minha língua se grude ao paladar se eu perder tua lembrança, se eu não puser Jerusalém acima de qualquer outra alegria” (Sl 137[136],5-6).
Da Jerusalém terrestre, então amontoado de escombros e ruínas fumegantes, mas que continuava sonhada pelos escravizados de Nabucodonosor, voei para a celestial, razão de ser de todos os que creem, de todos os que vislumbram o definitivo. Da figura, passei para o figurado.
Em minha longa vida ministerial, atendi muitas pessoas apavoradas ante a perspectiva da morte. “Morriam de medo de morrer!”. O pavor não as deixava viver. Portanto, nem morriam e nem viviam. Deixavam de desfrutar o desfrutável, pois o pavor as inibia ante qualquer iniciativa. Eram mortas-vivas ou vivas-mortas. Tratava-se de pavor patológico que pedia acompanhamento terapêutico especializado. Assim mesmo, é sempre vital que saibamos vislumbrar a razão de ser de nossa existência para programar a vida, nela incorporando a morte, mas em vista da Vida. Assim, a morte se torna etapa e deixa de ser bicho-papão, transformando-se em passagem para o definitivo; e as portas para a serenidade se abrem.
O Salmista que projetava sua vida na destruída Jerusalém e no que ela lhe significava, alimentou a minha reflexão, a minha opção existencial. Sempre recusei a “nadificação”; o nada me é absurdo, pois tudo tem sua razão de ser, máxime o ser humano. Procurei sempre mirar alto, dar sentido à minha existência, a saber, sempre recusei o “nonsense” da vida terrena; ela não me é um disparate. Então, meditando os judeus que contemplavam Jerusalém terrena, eu pensava na minha celeste. Mas, entre eu e ela, há a morte. Se não a encaro enamoradamente, também não a vejo como bicho-papão, vencedora invencível. Eu a encaro como componente do ponteiro que me indica o norte de minha vida. Então, entre o meu existir agora, e o meu porvir, ela fica relativizada. Sei que caminho para a plenificação.
Ao refletir, me recordei do neoplatônico Plotino; ele me tocou ao afirmar que “o ser humano tem saudades do céu”; ou então, Raissa Maritain, a esposa de Jacques. Ambos, jovens, ateus, mas famintos da verdade, do belo e do bom, já tinham programados a suicídio, pois, “aceitariam vida dura e difícil, mas jamais a sem sentido”. Mas encontraram o que tanto procuravam e a flor desabrochou.
Estava, ainda, impregnado pela reflexão do dia anterior quando, no Ofício das Leituras, fui prendado com o exímio S. Agostinho, quem tanto procurou Deus, dizer: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova; tarde te amei! Estavas dentro e eu fora te procurava. Precipitava-me eu disforme, sobre as coisas formosas que fizeste. Estavas comigo, contigo eu não estava. As criaturas retinham-me longe de ti, aquelas que não existiram se não estivessem em ti… Quando me uno a ti, com todo o meu ser, não há em mim dor nem fadiga”. E conclui: “Em tua imensa misericórdia ponho toda a minha esperança”. É o que diz em sua sempre atual “Confissões”.
Então, além da perspicácia da inteligência humana que, em sua amplidão não abarca tudo, pois tem suas definições, seus limites, existe o amor que parece ser capaz de sempre a cada vez mais, “conter” o próprio Deus. O poder “cognitivo”do amor, sempre pode ser mais e mais, a ponto de o “conter” em sua capacidade amorosa.
Então, nesta perspectiva é interessante, mais do que os escravos da Babilônia que suspiravam pela transitória Jerusalém, que nós, peregrinos nesta terra, suspiremos pela Jerusalém celeste, por Deus, o único que pode saciar plenamente o ser humano.