Texto de P. Alcides Marques, CP
No século II da era cristã apareceu um sujeito chamado Marcion, adepto do gnosticismo, que no afã de afirmar a novidade de Jesus Cristo, negava toda possível influencia judaica no cristianismo. Na prática, ele e seus seguidores negavam todo o Antigo Testamento e o que do Novo Testamento fazia algum tipo de ligação entre as duas alianças. A sua doutrina foi condenada pela Igreja como heresia. Nós cristãos devemos reconhecer como inspirados todos os livros do Antigo Testamento. Mas fica uma questão: que possível ajuda os livros do Antigo Testamento pode nos oferecer? Será que não somos marcionitas sem querer?
Algumas vezes, sentimos mal ao ler trechos do Antigo Testamento. Se Jesus fala em amar os inimigos (cf. Mt 5,43-47), o livro de Josué propõe o extermínio dos inimigos (Js 6,20-21). Tem salmo que fala em esmagar crianças na rocha (Sl 137). Assim sendo, quando lemos tais passagens ficamos sem entender porque as mesmas fazem parte da única revelação de Deus. Que história é essa de num momento poder fazer uma coisa e noutro momento ter que fazer exatamente o oposto? Que história é essa que num momento aceita a poligamia e noutro rejeita o divórcio?
O filósofo francês Lucien Goldmann (1913-1970) fala em “consciência possível”. Com isso, ele quer dizer que em cada época histórica existe uma consciência social possível. Ou seja, nós não podemos julgar o passado com a consciência que temos hoje. O certo seria tentar descobrir as possibilidades que as pessoas do passado tinham para agir ou não de uma determinada forma. Não se trata de justificar os erros do passado, mas de avaliar as ações das pessoas do passado segundo as suas possibilidades.
Voltando ao nosso caso, é muito fácil julgar o Antigo Testamento com a consciência que temos hoje a partir de nossa fé cristã. O que precisaríamos fazer é um retorno mental à época do Antigo Testamento para podermos nos aproximar mais da consciência possível das pessoas daquele tempo. Um caso bastante exemplar é o da atitude dos discípulos durante a paixão e morte de Jesus Cristo. Olhando para trás podemos achar que eles, ao abandonar Jesus, foram covardes e ingratos. Mas nós cremos que o Cristo ressuscitou, mas eles ainda não sabiam o que iria realmente acontecer. Qualquer um de nós, caso estivesse no tempo e lugar deles, faria a mesma coisa ou até pior.
A Lei do Talião – “olho por olho, dente por dente” (cf. Lev 24,19-20) – foi uma lei revolucionária na época. Isso porque a tendência das pessoas era desencadear uma vingança brutal e desmedida. Por exemplo: se uma pessoa matasse uma ovelha do meu rebanho, eu acabaria com todo o rebanho dela. A Lei do Talião visava colocar limites neste impulso de vingança. Diante das possibilidades do mundo, ela foi sim uma lei revolucionária.
Se Cristo é a plenitude da revelação de Deus, então o Antigo Testamento só serviria para nos alertar o quanto somos diferentes dos antigos judeus? Não é bem assim. Precisamos entender que o nosso Deus, Pai, é o mesmo Deus de Israel. Um Deus pessoa que caminha e dialoga com seu povo. Assim sendo, a revelação de Deus é progressiva e histórica. Conforme o passar do tempo, novos ensinamentos são adquiridos. E o Antigo Testamento testemunha isso. É Deus quem está educando o seu povo até chegar à plenitude dos tempos, o tempo de Jesus Cristo. Experimente ler assim o Antigo Testamento que você vai entender o qual divino ele é.
Além de ser parte da pedagogia divina, o Antigo Testamento traz lindos ensinamentos para nós. Veja a maravilhosa reflexão sobre o sentido do sofrimento humano no livro de Jó ou a intrigante reflexão sobre o sentido da vida no livro do Eclesiastes. Quantos Salmos vêm ao nosso encontro, sobretudo nos momentos mais difíceis de nossa vida? Então, vamos valorizar e ler mais os livros do Antigo Testamento?