Derrubou o muro da separação

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

A fotografia da criança síria morta na praia e depois, nos braços de um militar que a recolheu, tocou a humanidade toda. E não sem razão.

Pergunta-se: até quando o desequilíbrio nos levará à exacerbação do instinto tanático (a tendência para o ódio, para  morte do próximo), fazendo com que nos comportemos pior que os irracionais?

Será que gritaremos, protestaremos, rasgaremos as nossas vestes clamando “blasfêmia”, como o sumo sacerdote perante Cristo (Mt 26,65), até que venha outra notícia chocante, proposta pela mídia, e a anterior volte ao olvido sem deixar consequências positivas? Repetiríamos a dolorosa tese de Gattopardo propondo uma revolução sem fim “para que tudo permaneça como está”?

É doloroso ver milhares de pessoas tangidas de suas pátrias à procura de abrigo alhures, para que lá possam viver. Primeiro, são exploradas por abutres humanos que superlotam cascas de nozes sem condições de enfrentar o desafio do mar, abandonando-as, a seguir, ante o menor perigo. Depois, as enormes dificuldades de serem acolhidas como gente em algum lugar do mundo.

Não temos espaço para refletir o problema que, na verdade é desafiador. Mas é de se aceitar que “a terra de Deus é, antes de tudo, terra dos irmãos”. Mais do que nunca, somos desafiados pela proposta de Cristo: descobri-lo na pessoa do migrante (Mt 25,38-40).

Geograficamente, estamos distantes de dramas cruéis vivenciados por tantos irmãos e que a mídia nos apresenta como espetáculo hoje, e que amanhã sai de cena. Tudo dependerá de notícias mais impactantes, mais rentáveis, que levam os menos críticos a um perpétuo espetáculo circense que visa derramar lágrimas estéreis.

É constatável que basta traçar um risco no chão e, a partir daí, com a maior naturalidade do mundo, dizer: nós, os daqui e vocês, os dali. A partir daí a tocha vai se aproximando da pólvora.

Este risco, que eu chamaria geográfico, toma milhares de configurações, fazendo emergir todo tipo de discriminação: pobre e rico; homem e mulher; negro, branco, amarelo, vermelho; homo e heterossexual; cristão e não cristão…

Esta amostragem de confrontos é suficiente para que pessoas, que justamente se indignam contra dramas distantes, entrem em alta combustão quando neles se veem envolvidas. E não é de se excluir quem se considera altamente evangelizada, catequizada.

É o momento, agora, de colocarmo-nos ante o texto de Ef 2,14: “Cristo é nossa paz. De dois povos ele fez um único. Em sua carne ele derrubou o muro da separação: o ódio”. Sem dúvidas, o texto se refere a judeus e não judeus como que divididos por muralha intransponível. Por meio de sua oblação na cruz, pelo seu sangue, todo muro separatório, excludente, excomungante, deve ser derribado.

Assim, os dramas que acontecem a milhares de quilômetros sejam incentivo para profunda reflexão sobre o que também acontece entre nós, em maior ou menor escala. Fomos criados para viver em comunhão. Se não soubermos assumir concretamente tão sublime ideal, que por sinal caracteriza o cristão, que ao menos não haja lugar ao ódio e ao preconceito em nossos corações.

Nada melhor do que terminar o espaço dado, com a afirmação irônica e lapidar de Paulo, escrevendo aos gálatas: “A lei encontra a sua plenitude num único mandamento: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Mas, se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros (Gl 5,14-15).