Lasciate ogni speranza

Texto de P. Mauro Odoríssio, CP

Uma reflexão em razão da morte de Umberto Eco (19 de fevereiro de 2016).

Ele é mais conhecido pela obra “O Nome da Rosa”. Mas tive a oportunidade de ler, também, “Em que creem os que não creem” que, em parte, contém correspondência epistolar entre ele e Cardeal Martini. A obra é recomendável para quem gosta de pensar, de refletir.

O intelectual italiano, na primeira carta, deseja saber como interpretar os “mil anos” que, segundo Apocalipse, seria o final do mundo. De antemão recordo: Milão parava quando Martini, que lá era arcebispo, fazia pronunciamentos. Todos sabiam que, daquele poço de cultura, só saía riqueza. Acrescento um dado que me é caro: o Cardeal, quando lecionava, foi reitor do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde tive a ventura de me formar em exegese ou ciências bíblicas.

Nas primeiras cartas que ambos trocaram, abordaram a questão da pós-morte.

Novo parêntesis: o título do artigo é algo absolutamente meu, fruto de minha reflexão pessoal ante a passagem do caro escritor italiano. Serve de ponto de partida para a reflexão. É de Dante Alighieri que, na porta do inferno, colocou a célebre sentença: “Lasciate ogni speranza, o voi ch´entrate”. O condenado ao inferno é convidado a deixar fora da porta, qualquer resquício de esperança.

Sinto aversão a qualquer tipo de claustrofobia mental. Vejo-me criado para o infinito, para o incomensurável (assim como todos os humanos o são). Desde meus primeiros anos de padre, com meus jovens, debatia o asfixiante “eterno retorno” de Nietzsche, o que seria andar sem sair do lugar ou voltar aos passos anteriores, sem progressão. Não aceitava, como não aceito, o falso e enganador “Sísifo feliz”, de Camus que recorda o personagem mitológico, condenado a levar pesada pedra ao cume de alta montanha. Sabia que, antes de chegar ao pico, o bloco rolaria despenhadeiro abaixo, cabendo ao infeliz Sísifo reiniciar a faina que jamais concluiria. Refletia com a então garotada, alguns dos quais ainda me recordam, que o “nonsense”, o não sentido da vida era um absurdo, era tremenda frustração existencial.

O Cardeal, em sua resposta, mostra que o fulcro da questão está na esperança, ou, acrescento eu, no ver além dos horizontes, os quais conseguimos contemplar com nossos limitados olhos corporais. Pessoalmente vejo que os animais, vindos da terra como os humanos, mesmo entre tantos fatos e acontecimentos, jamais sabem contemplar o além. Aos seres racionais, mesmo em meio à singularidade do que chamei de fatos e de acontecimentos, é dado vislumbrar a universalidade das mensagens que nos passam que, em outras palavras, são janelas que se abrem para o infinito. Esperança é, no mínimo, descortinar algo além das fronteiras materiais, palpáveis. É descobrir o sentido da “história” que não é mera sucessão de fatos e de acontecimentos. Não é algo sem saída ou que caminha para a escuridão, para o fatídico. Os animais irracionais “entendem” as coisas como predeterminadas; encaram os fatos ou acontecimentos fechados em si mesmo sem elaborar conceitos universais. O humano é histórico: abre-se ao infinito na origem e na finalidade de tudo.

Por mais terreno que o ser humano venha a ser, afinal veio da mãe terra, por mais que dela venha a precisar, por mais que ame os valores terrenos, consciente ou inconscientemente, ele vislumbra alturas, o “sopro divino” recebido quando da criação.

O animal caminha neste mundo sem ter noção do “donde” e do “para onde”. Na verdade ele vegeta em sua sensibilidade, caminha ignaro em seu “estar aqui”. Diversamente o humano; dotado da razão que o especifica, ele se volta protologica e escatologicamente, isto é, para sua origem e para o seu fim, para a razão de seu ser. Sabe-se terreno, mas se vislumbra vocacionado a ser cidadão do infinito.

A ocasião proporcionou a elaboração deste artigo. Achei, porém, ser adaptado ao tempo litúrgico que vivemos: a quaresma em vista da Páscoa. Refiro-me são só à celebração pascal, mas à Páscoa definitiva. Todas as vicissitudes quaresmais têm sentido na medida em que existe a Páscoa definitiva. Tanto que, para demonstrar que a vida tem sentido, o Senhor não se poupou a si mesmo. Tudo em vista da Vida Plena que o Senhor proporciona à humanidade (Jo 10,10).