Texto de P. Alcides Marques, CP
Na Profissão de Fé, nós declaramos: “creio na ressurreição da carne”. Mas o que significa esta afirmação? Quais são as suas consequências em nossa vida? Lembremos que a fé na ressurreição de Cristo não é apenas um componente de nossa vida cristã, mas é o fundamento, a razão mesma do nosso ser cristão. “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé” (1 Cor 15,14).
O Novo Testamento foi escrito em grego, mas o sentido das palavras utilizadas, sobretudo por São Paulo Apóstolo, vem da mentalidade semita (judaica). Assim sendo, quando lemos as palavras “corpo” e “alma” devemos entendê-las em seu sentido bíblico original e não na maneira como normalmente entendemos. Como assim? De um modo simplificado, podemos dizer que as entendemos como partes do ser humano. Usamos muito o verbo “ter”: eu tenho um corpo, eu tenho uma alma. Na bíblia, corpo e alma não são partes do ser humano. O ser humano inteiro é corpo. O ser humano inteiro é alma. Deveríamos usar o verbo ser: eu sou corpo, eu sou alma.
Concretamente, o corpo não deveria ser entendido como a nossa estrutura físico-biológica e sim como nosso ser integral enquanto capaz de estabelecer relações: com Deus, com os outros, com a natureza criada. A nossa materialidade física – o que normalmente chamamos de corpo – é parte da nossa corporalidade; é o meio que dispomos para estabelecer relacionamentos. Valorizar o corpo é valorizar os nossos relacionamentos, inclusive com o nosso próprio “eu”. A alma diz respeito ao nosso ser integral enquanto seres animados, energizados, impulsionados para a vida.
O que aconteceu para que perdêssemos, com o passar do tempo, esta ideia integral do ser humano? A resposta vem da poderosa influencia da mentalidade grega (platônica) em nossa maneira de entender as coisas da fé. A mentalidade grega é dualista e divide a realidade em dois andares: o do bem (de cima) e do mal (de baixo) e assim o corpo ficou ligado ao andar de baixo e a alma, ao andar de cima. Que consequências isso trouxe na vida prática dos cristãos? Uma desvalorização de tudo o que é corporal e uma negação do valor divino (santificante) das ações tipicamente corporais. As pessoas mais idosas testemunham uma época em que, por exemplo, o baile era visto como um pecado. Qualquer baile. Observe que dançar é um ato corporal. As filhas de Maria e os Congregados marianos deveriam ser pessoas de oração (ação espiritual) e não frequentadores de bailes.
As coisas não deveriam ter chegado a este ponto. Adélia Prado lembra que o cristianismo, particularmente o católico, é uma religião do corpo. Repare os gestos nas celebrações: sentar, ficar em pé, ajoelhar, prostrar, dar as mãos, beijar as mãos, fechar os olhos, comer (Corpo de Cristo), beber (Sangue de Cristo). Repare também as imagens (corpo dos santos, dos anjos, de Maria, de Cristo); os objetos litúrgicos; as procissões. Repare particularmente a preocupação com a beleza do ambiente celebrativo: as vestes (olhos), as músicas(ouvidos), incenso (olfato), as unções (tato), os alimentos sagrados (boca).
A consequência de nossa fé na ressurreição da carne é que tudo o que é genuinamente corporal é autenticamente divino. Tomar banho é um ato divino. Caminhar, correr, nadar e dançar são todos atos divinos. Os nossos sinceros abraços, beijos e sorrisos são atos divinos. São divinos porque tem a ver com Deus.
Não somos cristãos apenas quando estamos em oração num templo religioso. Somos cristãos em todos os momentos e lugares. Que tal valorizar mais o seu corpo, cuidar dele e de tudo o que ele pode fazer para que você seja sempre “um ser de relações”!? Sair com os amigos, passear com o cachorro, tomar um bom vinho, fazer um trabalho manual, dar remédio a um doente, cantarolar e até rezar são ações cristãs. Nada escapa do projeto salvador de Deus.