De trás para frente

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

Nossas impressões diárias nem sempre são devidamente refletidas e, com isto, ficamos a vida inteira carregando equívocos que afetam nosso modo de ser, de pensar e de viver. Assim sendo, vamos caminhando  equivocadamente, e podemos nos julgar atualizados.

Exemplo? Pois não. À primeira vista parece ser o sol quem dá voltas ao derredor da terra e não o inverso. A terra, por sua vez, deixa a impressão de estar parada, estática, quando, na verdade, gira doidamente ao redor do próprio eixo e de seu centro que é o sol. Sem falar no processo de expansão que está a partir de determinado ponto de partida o big bang, isto é, a grande expansão.

Agora, vamos ao nosso estudo. Cedo, vivendo, e sem considerar o mistério da vida, passamos a ter experiência da morte. Algumas vezes se trata de pessoa adiantada em anos, alquebrada por doenças que vai dando adeus à existência terrena. Em casos assim, procuramos nos resignar com argumentos ou arrazoados não de todo convincentes: “descansou… foi para uma melhor”…

Mas os argumentos se esboroam quando uma criança, na plenitude de sua vitalidade, parte levada por acidente ou por doença misteriosa. As argumentações podem trazer certo conforto, mas na verdade fica o sentimento de: “estou devendo a você razão mais consistente”.

Resumindo: com isto, a morte se torna a experiência mais marcante, o bicho-papão imbatível, vencedora da vida que assume lugar secundário. E, para os que creem, viria o conforto da ressurreição. Esta, no fundo, seria um alento perante o monstro devorador e invencível: a morte. Então, a vida eterna viria como desagradável remendo na vida sem sentido. E não é esta a postura correta; passamos a encarar as coisas de trás para a frente, na qual a morte é a vitoriosa, é o ponto de partida. E não; o ponto de partida é a vida. Como a escuridão não existe de per si, mas é ausência da luz, assim se dá entre vida e morte.

Podemos estatuir como princípio: a morte é ausência da vida que é a grande e rica realidade. Aquela não existiria se não existisse esta. Deus, que é o doador da vida, mais do que vivo, ele é “a Vida”. Sim, a Vida ontológica da qual os demais viventes são tais por participação.

Enviado pelo Pai, Jesus veio ao mundo para que todos tivessem a vida e a tivessem em plenitude (Jo 10,10). Não sem razão Ele se revela ser “a Vida” (Jo 14,6).

Estamos, ainda, em pleno tempo pascal. A Igreja insiste na riqueza desse mistério sublime e máximo do cristianismo: Cristo abraçou um corpo não para deleites terrenos, como as divindades pagãs, mas para morrer, e mais do que isto, para morrer na morte maldita de Deus (Dt 22,23-24). Isto em vista da plenificação da humanidade, para que ela fosse liberta da maldição que a todos onerava (Gl 3,13). Por isso mesmo que, ao chegar a este mundo proclamou que viera para se oferecer em holocausto em nosso favor (Hb 10,5-10).

O Senhor abraçou a morte para que, por ela a humanidade se redimisse da opressão tanática, mortífera, e passasse a reinar a vida, a chamada ressurreição que é a sua plenitude. Significativamente é dito que, ao morrer na cruz, os sepulcros se abriram (Mt 27,52). Acaba império da morte. Não só se evidencia a chegava da ressurreição, mas a vida em plenitude. Afirma-se, então, que a vida terrena tem sentido, que não está asfixiada pela horrível claustrofobia do vir do nada, vegetar e encaminhar-se para ridícula nadificação. A VIDA, que assumira corpo para morrer, morreu para plenificar a humanidade e libertá-la do aguilhão mortífero de existência sem horizonte amplo.

Então, a mensagem pascal nos impõe recusar a morte como dura e concreta realidade, e a ressurreição como mero consolo ou “chupeta para o bebe não chorar”.  Portanto, não é de refletirmos de trás para a frente, a saber, partir da morte como crua e invencível realidade, atribuindo à ressurreição ou vida eterna o papel de calmante aos que não suportam o absurdo da vida. Nosso ponto de partida não é a morte, mas a Vida, a grande realidade. O aparente triunfo tanático na existência humana, a cada instante, na peregrinação terrena, vai cedendo lugar para a perpetuidade do ser humano.

O período pascal deve abrir os horizontes para os que se sabem cidadãos do infinito. Daqui clamarmos na liturgia pascal: “ó morte, onde está a tua vitória”?