Falar línguas

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

As pessoas com as quais convivo sabem que, há uma semana, meu irmão Ézio voltou à comunhão definitiva com o Pai (1Cor 15,28). No momento eu o tinha presente ante os meus olhos. Nenhum dos seus membros faltava, a começar pelo seu coração nobre e excepcional. Todavia, todos estavam inertes. Faltava-lhe o princípio vivificador: sua alma trabalhada que o acompanhou desde a concepção. E, sem ela, os olhos não viam, o coração não pulsava e os braços sempre abertos à acolhida, não se moviam.

Algo parecido acontece conosco e com a Igreja, o Corpo Místico de Cristo; ambos precisamos de princípio vivificador para que tenhamos vida sobrenatural. Como o corpo sem alma vai se desintegrando após a morte, sem alma vivificadora, o mesmo se dá com a nossa vida sobrenatural e com a da Igreja. E o Espírito Santo, que celebraremos domingo, é quem vivifica os nossos corações e o da Igreja. Na verdade, somos vivificados por Deus Pai, por Deus Filho e por Deus Espírito Santo que operam tudo em todos (1Cor 12,6); mas atribuímos ao primeiro a criação, ao segundo, a redenção e ao terceiro a santificação.

Costuma-se dizer que o Espírito Santo foi concedido na festa de Pentecostes (prestes a ser celebrada). Na ocasião celebraremos outros mistérios. O Paráclito nos foi dado na morte de Jesus. Tanto que, em Jo 19,30, não é dito que Jesus “expirou”, mas, significativamente, que ele “entregou o Espírito” (parédoken to pneuma). Então, com a morte do Senhor, surgia, nascia a Igreja que não é apenas entidade jurídica, mas muito mais do que isto: é o Corpo Místico de Cristo (1Cor 12,12-27).

Inevitavelmente, este mistério evoca o Criador, na criação, “soprando” nas narinas do boneco de barro que plasmara. Este, veio da terra (adamah”), e por isso, foi chamado “adam”, Adão, isto é, terreno.  Contudo, o tal boneco terreno, recebeu o “sopro”, o hálito, o espírito de Deus, algo da divindade e, assim, tornou-se também espiritual (Gn 2,7).

Por sua natureza, este ser terreno e espiritual estava exposto à morte e, existe uma mata o corpo. A outra, porém, mata por dentro: é o pecado. Ele elimina o que nos foi dado na cruz e faz com que nos excluamos a nós mesmos de pátria celeste. Então, para que dela nos livremos, o “mesmo Espírito” que foi dado na morte de Jesus se faz presente na Igreja com o dom de perdoar os pecados (Jo 20,19-23).

Não sou adivinhão, mas percebo que o caro leitor está me perguntando: “e essa história de falar línguas” (At 2,1-18)? Não é agora que ouço esta pergunta; tantos a fizeram na igreja, nas salas de aula.

Coloquemo-nos no devido contexto: crescendo, a Igreja acolhia gente oriunda de todos os povos e parecia que tudo viraria Babel; ninguém se entenderia (Gn 11,1-10). É bom lembrar que a Bíblia não fala em “confusão ou origem das línguas”, em Babel. Basta consultar o que é dito pouco antes: os diversos idiomas já existiam (Gn 10,5.20.31). Que a partir de Pentecostes comece,os a falar a “língua do coração”.

A Igreja acolhia, então, pessoas de mentalidades e culturas diferentes e tudo poderia acabar em confusão. Mas não era o que estava acontecendo. Ao se dizer que todos falavam em línguas (At 1,1-21), se afirma que, embora falassem “idiomas” diferentes e pouco compreensíveis, conseguiam se entender por falarem a “língua do amor”, a única entendida por todos. Estavam, então, “embriagados” por álcool especial, não do que vem da cana ou da uva, mas do alto. O verdadeiro amante é um embriagado: torna-se capaz de dar a vida por quem ama (Jo 15,12-13). E a fonte de álcool tão embriagador é o Espírito Santo que não veio para cirquinho, mas para algo vital e profundo: vivermos o amor celestial.

Caríssimos, quem deseja falar idioma diferente, é só procurar escolas especializadas. Não faço propaganda de nenhuma delas.  Mas, com toda segurança, mesmo sem receber comissão, faço a maior publicidade: querendo falar a língua da fraternidade e do amor, é com o Espírito Santo.

A propósito: quem estiver interessado em falar idiomas diferentes, além do nosso caro português, dou como primeira incumbência: observar que, em vários deles, significativamente a palavra “espírito” e “álcool” são sinônimos.

Que num mundo marcado pelo ódio, saibamos falar a “língua entendida por todos: a do amor”.

 Pe. Mauro Odoríssio, CP