Texto de P. Mauro Odoríssio, CP
As Leituras Litúrgicas do 1º Domingo da Quaresma são vivíssimos apelos a uma vida nova, à conversão que não é mera passagem de uma “religião para outra”. Bem ao contrário, é solicitação de crescimento diuturno de estado de menor para maior perfeição. E nem poderia ser diferente, uma vez que a finalidade última do cristão é “ser perfeito como o Pai Celeste o é” (Mt 5,48).
O grito suplicante lançado pelo Salmista há milênios chegou vivíssimo aos corações dos que participaram da Eucaristia: “Purificai-me… lavai-me todo inteiro… apagai a minha culpa…. criai em mim um coração que seja puro” (Sl 51[50],3-4.12).
Esta súplica pede renovação total, ou nova criação. Portanto, atinge o entitativo do coração, âmago do ser para, em decorrência, afetar o viver e o agir, como diz o título de nossa reflexão. Realmente, não há vida religiosa que não parta antes do mais íntimo de nosso íntimo, o coração. Daqui a súplica do Salmista: “criai em mim um coração que seja puro”. A partir dela, então, da “criatura recriada”, vai acontecendo vivência e atividade decorrentes do coração recriado.
Esta colocação faz com que se compreenda melhor a 2ª Leitura (Rm 5,12-19), que pediria tratado e não considerações passageiras. Nela há paralelismo antitético que fala tão eloquentemente como as palavras: de um lado é colocado o ser humano criado, o chamado “primeiro adão”, o adão terreno, as criaturas racionais. Ele é chamado “adão” por vir da terra que em hebraico é “adamah”. O ser racional, então, é “adam”, o terreno.
De outro lado, ele recebeu algo do “mais profundo” do Criador: o seu espírito, o seu hálito, o seu entitativo: o “ruah”. O ser humano, de certa maneira, é terreno divinizado. Assim sendo, sente os atrativos da mãe terra, assim como as solicitações do alto, da divindade. Trata-se de tensão sem trégua. A solicitação ao pecado é, então, constante.
Em contrapartida ao pecaminoso adão terreno, foi-nos dado o Adão Celeste, Cristo. Do primeiro veio o pecado, a morte; da Morte do Segundo, veio a vida para todos. Por meio de Cristo Crucificado o céu se escancarou para todas as pessoas de boa-vontade.
Partindo destas colocações, é mais fácil compreender a mensagem da 1ª Leitura: Gn 2,7-9; 3,1-7.
O ser terreno masculino, mesmo no paraíso terrestre, sentia-se carente. Então, de sua costela, ou mais precisamente, de seu lado, de sua parte, algo dele mesmo (tselah), foi tirada a mulher, o osso de seus ossos, a carne de sua carne.
No jardim celeste surge estranha serpente tentadora. Ela é assim ridicularizada por ser adorada por alguns povos que a tinham como eterna. Na época da muda da pele ela parece sair de dentro dela mesma; isto impressionou as pessoas.
Em diálogo desigual e imprudente entre o humano e a serpente, esta lhe mostra que, ao comer do fruto proibido, ele seria “deus”. O pecado, portanto, não está na “desobediência humana”, mas na própria absolutização pela qual o Senhor é cancelado do coração humano. O comer o fruto proibido é a falta (parabasin), a exteriorização do pecado (amartia). As Escrituras deixam claro que o pecado se aninha escondidamente no coração humano; o que se vé, é a falta: “Quem odeia o seu irmão é assassino” (1Jo 3,15). Então, o assassinato acontece antes no coração e quem odeia, mesmo não cometendo a falta, é assassino. Assim como assassino foi Judas que, exteriormente, se serviu de liturgia amorosa, mas mentirosa, em dano de Jesus que ele já assassinara em seu coração (Lc 22,48).
O 1º Domingo da Quaresma nos convida à autenticidade religiosa, à conversão constante. Portanto, é de se pensar, antes e acima de tudo, como diz o texto do artigo, no SER, no entitativo, no constitutivo, no coração transformado crescentemente pela graça divina. Como decorrência de tal autenticidade, é de se esperar a vivência religiosa. Estas forças vitais, transformadoras, devem ser também operativas: em espírito fraterno e de profunda gratuidade, estar sempre aberto ao serviço, ao bem dos irmãos.
É assim que se vive, realmente, os mistérios pascais: Morte e Ressurreição de Jesus.