No início era a Palavra

Texto de P. Mauro Odorissio, CP

O objetivo de nossa consideração é refletir a Palavra de Deus, o grande dom celestial concedido à humanidade. Eu vibro ante o esforço do poeta ao compor o Sl 119 (118), exaltando a mensagem divina. Em esforço verdadeiramente hercúleo e desafiador de santo e de poeta, ele compõe a referida poesia com 22 estrofes (número das letras do alfabeto hebraico), cada uma delas composta com oito versos.

Mas o mais desafiador foi colocar cada verso, iniciando com a mesma letra da estrofe. Assim como se compuséssemos uma poesia cujas estrofes seguissem a ordem de nosso alfabeto: A,B,C,D etc, mas, os oito versos começassem com a mesma letra da estrofe. Nesta ou naquela letra, talvez o trabalho seria fácil; mas, chegando a hora dos W, X, Y, as coisas ficariam bem complicadas.

Todavia, para poeta capaz, inspirado e inflamado pelo amor, tudo é possível.

Antes, porém, de adentrarmos no nosso tema que, por estar sucinto, pede outros desdobramentos, é de se recordar a caminhada da filosofia.

Todos temos experiência do que é uma mesa. Vimos uma primeira, em nossa infância, a querida mesa da refeição ao redor da qual nossas famílias se reuniam. Foi quando, num determinado momento, deixamos a mesa do colo sagrado de nossas mães e nos colocaram em outra, também santa, com tantas coisas diferentes: pratos, copos, travessas, talheres e um mundo de papinha. Esta substituía o “insubstituível” leite materno. O certo é que aprendemos o que é mesa. Adquirimos o chamado conceito ou ideia de “mesa”. Ela é uma realidade lógica em nossa mente; mas, a sua fonte é a mesa concreta, chamada ontológica. Tanto que depois, vendo mesas diferentes, maior ou menor, grande ou pequena, quadrada ou redonda, nós a chamamos “mesa”. Tais realidades, embora distintas, se adaptam ao chamado conceito universal.

Isto ocasionou enorme debate há mais de mil anos, entre filósofos chamados “nominalistas”. Chegaram a cunhar uma expressão que ficou célebre: a palavra é “flatus vocis” = sopro da voz.

Fiz esta digressão para dizer que ela não é simples sopro de voz, máxime em se tratando da PALAVRA DE DEUS, tema de nossa reflexão.

A palavra que dizemos revela, no mínimo, o nosso interior, as possíveis vacuidades, criatividades, pecaminosidade, santidade… Ela tanto pode construir como  destruir. A “arma” do discípulo do Senhor é a palavra transformadora. E cada cristão deve ser seu ministro, semeador da boa semente.

Lucas é exemplo eloquente do que está sendo afirmado: quem passa por experiência de Deus se sente, de imediato, um apressado ministro do Senhor. Tomemos como exemplo a atitude eloquente de Maria. Ela era simples adolescente (onze a treze anos), quando da Anunciação (Lc 1,26-39), e já era “propriedade” de José. Dizendo “sim”, à PALAVRA DE DEUS, ela engravidaria e, para todos os efeitos, para José ela cometera adultério. O Santo, por várias razões, deveria denunciá-la para que, conforme a Lei, ela morresse apedrejada como adúltera (Dt 22,23-24). E Maria disse sim à PALAVRA DE DEUS, e dela ficou grávida. Assim tornou-se  missionária. Arrostou dificuldades para levar Jesus a Isabel. Significativamente, o Evangelista diz que ela se tornou “apressada”, indo às pressas à casa da prima, viajando cerca de 120 quilômetros.

Ainda em Lucas é dito que os pastores, na noite de Natal, receberam o anúncio divino do nascimento de Jesus. Então também eles foram “às pressas até a gruta” como missionários da Palavra (Lc 2,16).

É neste sentido que se compreende o “mau conselho” de Jesus aos apóstolos de não saudarem ninguém pelo caminho. Quem acolheu a PALAVRA DIVINA não pode se deter pela estrada com as intermináveis saudações dos semitas; torna-se, necessariamente, um apressado (Lc 10,4).

A PALAVRA DE DEUS que continuaremos a refletir, é portanto, muito mais do que simples “sopro de voz”.