Vida e santidade

Texto de P. Alcides Marques, CP

Não sei se você sabia, mas a oração eucarística III é a mais ecológica de todas. Ecológica no sentido de destacar o valor divino da criação. Muitas vezes, passa despercebida a originalidade de cada uma das orações eucarísticas. É por isso que é sempre bom estudá-las para descobrir a riqueza que se esconde (ou se revela) nelas. O nosso querido Dom Helder Câmara é quem falava deste aspecto da oração eucarística III. E será este o nosso objetivo: desdobrar o seu significado ecológico. Note que a oração eucarística vai além deste significado.

Deus Pai é apresentado como “Deus do universo”. Não somente Deus da humanidade. No livro do Gênesis (capítulo 1), a palavra de Deus criou todas as coisas e não somente os seres humanos. E Deus disse (Palavra): faça-se… E foi feito (ação)… Na Sagrada Escritura, tudo o que existe veio de Deus (cf. Gn 2,1-2). O Novo Testamento acrescenta: por meio de Jesus Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis” (Col 1, 15-16). Nós humanos somos os responsáveis (administradores) pela criação e não donos. A criação toda é de Deus.

“… dais vida e santidade a todas as coisas”. Que tipo de vida é essa? A água, a pedra tem vida por acaso?  Sim e não. Não se trata da vida biológica, mas da vida divina. Tudo participa da obra da criação e possui uma luminosidade divina. Observe que a primeira obra da criação foi à luz. Neste sentido, é que fundamentamos as bênçãos. Qualquer objeto pode ser abençoado, os animais e plantas podem ser abençoados. Também as pessoas.

A santidade no caso não é propriamente um acréscimo, mas uma consequência.  Se a luminosidade divina está presente em todas as coisas, a santidade divina também está.  A santidade tem a ver com a referência a Deus. Tudo o que pode ser referido a Deus é santo. “Sede santos, porque eu sou santo” (Lv 19,2). A palavra hebraica “Kadosh”, santo, não se refere a uma pretensa perfeição moral, mas à originalidade de cada pessoa e ser criado. “Kadosh” quer dizer separado, no sentido de original, único, inteiro. O apelo bíblico é para que sejamos nós mesmos – e o mesmo vale para toda a criação -, assim como Deus é Ele mesmo.

Estamos falando em santidade, não sacralidade. A distinção sagrado-profano não entra no caso. Isso porque tal distinção separa a realidade em duas: o profano é aquilo que não é sagrado e vice-versa. Existem espaços (templos), tempos (domingos), pessoas (sacerdotes) e coisas (objetos religiosos) sagradas. Esta distinção é característica do universo religioso e faz mais mal do que bem. Mal porque induz a uma consideração do profano como desvinculado de Deus.

O tema da santidade supera a dicotomia sagrado-profano em vista de uma visão unitária da realidade; sem compartimentos estanques. A santidade das coisas brota da presença da luminosidade divina nelas. A santidade das pessoas brota também da luminosidade divina e da graça de Deus. O conceito de santidade que estamos acostumados no catolicismo precisa ser superado (não negado). É pouco chamar de santos apenas os canonizados e “perfeitos” (entre aspas porque perfeito é só Deus). A oração eucarística diz que Deus dá vida e santidade a todas as coisas. Todas.