Texto de Pe. Mauro Odorissio, CP
Antes de iniciar propriamente o texto do seu Evangelho, em linguagem acurada, elegante e demonstrando estar livre das fontes que usará no corpo do seu livro, Lucas escreve que investigou tudo “acuradamente”: “ácribós” em grego (Lc 1,14). A partir de Lc 1,5ss, o texto original cai de qualidade. É sinal que o Autor se adaptou, foi fiel às fontes que tinha em mãos.
Não pretendo abordar a árdua, mas interessante questão. Apenas adianto que, a partir da primeira semana de dezembro, iniciaremos o chamado Ano Litúrgico C, quando se usará preponderantemente, na liturgia, o texto do IIIº Evangelho. É importante, então, que dediquemos uns instantes de reflexão para que o texto sagrado seja melhor e mais aprofundadamente acolhido, de modo especial durante o ano litúrgico prestes a começar.
Lendo atentamente o Evangelho lucano, se nota que, diferentemente dos demais, ele insiste em mostrar Jesus indo sistematicamente para Jerusalém. Tem-se a impressão de que a cidade atrai irresistivelmente o Mestre. Ela parece sugá-lo. Trata-se de atração centrípeta irresistível:
1º – Logo depois da anunciação, ainda no seio materno de Maria, Jesus é conduzido a Jerusalém (Lc 1,39). A Virgem, indo ao encontro de Isabel, necessariamente passou por lá, uma vez que Ain Karem, onde moravam Isabel e Zacarias, dista uns cinco quilômetros do centro da chamada cidade santa.
2º – Atendendo a ordem de recenseamento vinda de Roma, Maria e José se colocaram a caminho de Belém e a cidadezinha onde Jesus nasceria dista uns oito quilômetros de Jerusalém, que era passagem obrigatória (Lc 2,4).
3º – Ao apresentar o Menino Jesus no templo, necessariamente Maria e José levaram-no à chamada Cidade Santa (Lc 2,22).
4º – Quando o Menino Jesus completou doze anos, praticamente passou a ser considerado maior, tendo que cumprir o preceito da peregrinação pascal. Com Maria e José percorreu mais de cem quilômetros e foi para a chamada Cidade de Davi onde estava construído o templo (Lc 2,41-50). Realmente ela parecia exercer incontrolável atração que o levava para lá.
5º – A vida pública de Jesus foi caminhada inexorável para Jerusalém. Lá aconteceria o ponto alto ou o ápice do mistério salvífico: Morte e Ressurreição (Lc 19,28-38).
Insistindo: em Lucas, “força irresistível” ia cada vez mais fortemente, levando o Senhor para a considerada cidade santa dos judeus.
Assim termina o primeiro livro escrito por Lucas. O arremate final do escrito é a narração da ascensão do Senhor ao céu. Mas há um particular a ser devidamente considerado e que não pode passar em brancas nuvens: ao voltar para lá, os seguidores do Mestre foram para o templo (Lc 24,50-52).
Com estes dados termina o seu primeiro livro, o Evangelho. Mostra que os seus seguidores estavam com o cordão umbilical ainda ligado ao templo, ao judaísmo.
Entra em cena o segundo volume escrito pelo Evangelista: Atos dos Apóstolos. Como o primeiro havia terminado com a narração da Ascensão de Jesus, o segundo livro lucano começa a partir da glorificação do Senhor.
A partir de agora, o leitor deve descobrir a força centrífuga que expele os discípulos para os quatro cantos da terra, como anunciadores e testemunhas do Senhor glorificado e exaltado. Eles devem anunciar ao mundo todo o mistério salvífico operado por Jesus (At 1,6-11). Portando, que não ficassem embasbacados olhando para o alto. O mistério salvífico deveria ser anunciado a todos os povos.
É digno de ser enfatizado: agora os discípulos não voltaram para o templo e sim para a “sala” onde costumavam se reunir (At 1,12-13). Desta maneira, eles cortavam o cordão umbilical que ainda os ligava ao judaísmo. A figura e a promessa se concretizavam na realidade. O Primeiro Testamento cumprira a sua missão e cedia lugar ao que ele anunciara. Então, que o novo ano litúrgico prestes a começar, sob a égide de Lucas, propicie aos membros de cada comunidade celebrativa acolher “ácribos”, acuradamente, a mensagem celeste de salvação. E que a Palavra acolhida proporcione crescimento em Cristo.