Texto de P. Alcides Marques, CP
Estamos tão acostumados a falar que ter não é o mais importante da vida, que quase sempre associamos o ter com dinheiro, capital ou coisas materiais. Sem dúvida, tudo isso é ter mesmo. Só que precisamos ampliar este conceito para “coisas espirituais” também. E para pessoas também. Aís sim podemos dizemos que não somos o que temos. A consequência para a vida é bem mais forte.
No mundo em que vivemos, marcado por uma cultura individualista, consumista e da aparência, não é fácil se libertar da idolatria do ter. É mais fácil falar do que, de fato, vivenciar a experiencia de simplesmente ser. Isso não quer dizer que devemos ou até podemos viver sem ter. Precisamos das coisas e das pessoas. O que está em questão é o fato de colocar o ser em função do ter e não o contrário. “Quem quiser salvar a sua vida, vai perde-la…” (Marcos 8,35).
Vejamos alguns exemplos de “coisas espirituais”. O conceito de espiritual no caso, não está necessariamente ligado a dimensão religiosa. Trata-se daquilo que não é material. Por exemplo, a amizade, o casamento, a comunidade religiosa. É muito bom saber e sentir que temos amigos, que temos um ao outro (para os casais), que temos filhos (para os pais), que temos uma comunidade religiosa (para os consagrados). O problema é quando transformamos pessoas em coisas. Na realidade, o que possuímos é a amizade do amigo (não sua pessoa); o mesmo vale para o casamento, filhos etc. Libertar-se do ter é libertar-se desta tendência em querer se apossar das pessoas, por mais bem-intencionados que estejamos. Pessoas são pessoas. Nenhuma pessoa pode ser colocada e, muito menos, se colocar no lugar de Deus.
Se eu não posso ter pessoas, eu tenho a mim mesmo! Também não. A nossa fé cristã – no Deus (Pai Maternal) revelado por Jesus Cristo -, inclui a forte convicção de que todos pertencemos a Deus. Somente Deus é absoluto. Somente a Ele é que devemos oferecer adoração. Isso inclui a minha própria pessoa. Santa Catarina de Sena dizia: “Deus é aquele que é; eu sou aquela que NÃO sou”. A minha vida não minha, ela é de Deus. “Eis-me aqui, Senhor”.
Pensemos agora em outras posses: eu tenho saúde, eu tenho jovialidade, eu tenho diplomas, títulos etc. Isso são qualidades, marcas do ser. Mas, também não revelam quem você é. E quando você se identifica com elas, isso vai fazer de sua vida um vai e vem de sofrimentos. Ou, talvez pior, uma somatória de sofrimentos. Ao perder a saúde desejada: sofrimento. No processo inevitável de envelhecimento: sofrimento. Diante de uma perda significativa (exemplo: um relacionamento), diplomas, títulos, perdem completamente o sentido: mais sofrimento. Conclusão: ou nós cultivamos o nosso ser ou vamos ficar a todo momento produzindo sofrimento para nós mesmos.
Se adoramos somente a Deus, reconhecemos que não somos donos de nada e nem de ninguém. Seria interessante que mesmo diante das coisas imprescindíveis que possuímos, pudéssemos sentir que as mesmas não são nossas, mas que estão à nossa disposição para a missão de vida a nós reservada.
Se não somos donos e se, somente Deus é absoluto, tudo pertence a Ele. Somos os administradores de Deus; responsáveis pela criação, pelas pessoas em geral, pelos irmãos mais necessitados, por nós mesmos. Cuidamos da vida não porque as pessoas (ou animais) ou as coisas nos pertencem, mas porque são de Deus. Cuidamos para Ele.
O filósofo judeu Hans Jonas chama isso de “ética da responsabilidade”. Somos parceiros de Deus em seu projeto de salvação. A nossa missão de vida, ou missão cristã, não é arrumar prosélitos para nossas igrejas, mas abrir espaços para que Deus possa agir no mundo e na história. Com isso, estaremos vencendo a idolatria do ter (em sentido amplo) e deixando o amor divino prevalecer em nós. É só isso que precisamos. É só isso que o mundo precisa.