Texto de P. Alcides Marques, CP
É sempre cativante refletir sobre a questão da liberdade. Mais ainda em nossos tempos, em que a liberdade individual avançou em todas as direções, mas também trouxe uma imensa gama de desafios e preocupações. O que é mesmo liberdade? Somos realmente livres? O cristianismo ajuda ou atrapalha o caminho da liberdade? Abraham Joshua Heschel foi um dos maiores teólogos judeus do século XX e tem uma linha de reflexão bastante original. E é lógico que, profundamente enraizado na tradição bíblica.
O livro de Heschel que vamos tomar como referência é “Deus em busca do homem”, da editora Arx. Ao falar em liberdade, ele confronta o senso comum. “Uma pessoa livre não é sempre aquela cujas ações são dominadas por sua própria vontade, porque a vontade (…) é determinada em suas motivações, por forças que estão além do seu controle” (250). Se eu acho que sou livre porque posso fazer tudo o que quero, posso estar, concretamente, no caminho oposto da liberdade. Grande parte do testemunho de dependentes químicos curados ressalta o sofrimento de ser escravo de si mesmo e a consequente a experiencia libertadora de poder tomar as rédeas da própria vida. Lembremos aqui de São Paulo Apóstolo quando diz aos gálatas: “é para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão” (Gl 5,1).
Não somos propriamente livres diante dos processos da natureza, das exigências da vida em sociedade e de nossos impulsos interiores (desejos e vontades). Existe alguma liberdade na maneira como podemos reagir diante dos mesmos, mas, em última análise, eles se impõem a nós. A nossa sabedoria está em saber lidar de uma maneira construtiva e criativa diante desses processos que teimam em determinar nossa existência.
No caso da natureza, pensemos na questão climática (chuva, calor, verão, inverno); no meio ambiente (poluição, doenças); na maneira como devemos lidar com as plantas e os animais; com a água e com a terra. As enchentes, os deslizamentos de terra, os furacões, os terremotos, são implacáveis. A natureza se impõe e não temos como dizer não a ela. Mas temos como reagir para minimizar ao máximo os seus danos. Um terremoto no Japão, por exemplo, causa bem menos vítimas do que em muitos outros países. A narrativa bíblica da criação (Gn 1-2) ensina que não somos donos da natureza, mas também não somos escravos dela.
No caso da sociedade, os limites impostos vêm do próprio convívio social. Eu preciso pensar que no mundo existem outras pessoas com seus direitos, necessidades, projetos e assim por diante. Nós precisamos das pessoas e eles precisam de nós. A liberdade deve acontecer na nossa capacidade de construir de maneira criativa os nossos relacionamentos interpessoais e a nossa convivência social. O cristianismo apresenta o amor (ágape) como a força geradora de uma convivência social saudável.
No caso dos nossos impulsos interiores (desejos e vontades), o exemplo maior vem da sexualidade. Esta é uma poderosa força da natureza e se dermos vazão a todos os seus impulsos, cairíamos numa vida de promiscuidade; seguramente, uma outra forma de escravidão. Por outro lado, a sexualidade se impõe e uma repressão brutal aos seus impulsos provocaria uma série de traumas e recalques. O cristianismo não pode ser a favor da promiscuidade, mas também não deve ser instrumento de repressão da mesma. “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10).
Heschel entende a liberdade como acontecimento. Já que não temos como ser absolutamente livres a todo momento, pois estamos marcados pelas leis da natureza e da sociedade, a liberdade verdadeira ACONTECE em momentos bastante pontuais da existência humana. “Somos livres em raros momentos” (251). A liberdade verdadeira acontece em nossas decisões maiores, que redefinem o caminho de construção da nossa vida. Um monge que vive na clausura talvez seja o mais livre dos mortais. Isso porque ele (a) pode dizer que tem de fato as rédeas de sua própria vida e que vive segundo uma decisão tomada que marcou e marca a sua existência e missão no mundo.