Texto de P. Mauro Odorissio, CP
Quando o primeiro ser humano pecou, a obra da criação ficou comprometida. O pecado, mais que uma desobediência, foi e continua sendo uma opção de auto-suficiência perante Deus. Com isso, o ser humano ficou excluído da comunhão com o Criador: Gn 3,6-11. Surge, daqui uma série de desencontros: o conjugal (Gn 3,12), o fraternal (Gn 4,3-11), o social: Gn 11,1-9. A humanidade se perverte: Gn 6,5ss. Há ruptura até entre o ser humano e o mundo: Gn 3,13-19. Ele se vê dividido em si mesmo: Tm 7,18-20. O Criador, nesse cataclismo, promete alguém que restauraria a ordem perturbada: Gn 3,14-15. Seria o anunciado Restaurador.
Povos usavam oferecer as primícias aos deuses. Não excluíam os primogênitos humanos que pertenceriam às divindades. Compreende-se como Abraão, entre os cananeus, estivesse pronto a imolar Isaac, o filho único (tipo): Gn 22,1ss. Os judeus não admitiam essa prática: dispunham do sacrifício de substituição ou de resgate (Nm 18,15) que livraria Jesus de ser imolado: Lc 2,22ss. Mas, como antítipos, o Pai Eterno não deixou de sacrificar o Filho Unigênito: Rm 8,32. Assim Jesus começou a ser anunciado pelas Escrituras.
O esperado Messias seria de Belém (Mq 5,1), o povo envolto pelas trevas seria iluminado por uma grande luz, incontida alegria o envolveria; o pesado jugo que o oprimia seria quebrado, a coleira, a vara do capataz, a canga e a opressão militar seriam destruídos. Tudo, por causa de um recém-nascido. Seria o Deus forte, assumiria o trono de Davi: Is 9,1-6. Da raiz de Jessé, seria dotado da plenitude do Espírito Santo, portador da paz messiânica: Is 11,1-9. O nascimento dessa criança seria virginal: Is 7,14; Mt 1,23. Sua atenção estaria toda voltada aos carentes, aos abandonados: Is 61,1ss; Lc 4,17-21. Ele seria apresentado por Deus como seu servo (alguém que tem especial missão): Is 42,1. Com essas mesmíssimas palavras Jesus é apresentado por Deus como filho: Lc 3,22 (uiós tanto significa filho como servo). Seria dotado de língua especial, única, a de Deus, para levar conforto aos abatidos: Is 50,4-5. Carregaria uma árdua e dura missão, mas ao mesmo tempo, gloriosa: Is 52,13-53,12.
Mateus e Lucas (e em parte, Marcos) apresentam uma cristologia ascendente: falam de uma criança que nasce paupérrima, cresce em graça e em santidade, faz, diz coisas excepcionais, vive santamente. Revela-se Deus. João fala de um Deus que assume carne, desce do céu e faz morada entre nós; sua cristologia é descendente. A de Paulo é descendente e ascendente: o Senhor se esvazia, se aniquila, se faz um maldito pela morte de cruz e, glorioso regressa ao céu levando consigo os seus (Flp 2,6-11).
Os Sinóticos apresentam Jesus falando do Reino de Deus, a grande expectativa dos judeus. Ele era apresentado sob os mais variados ângulos: Mt 13,1ss. Através de palavras e de ação, para mostrar que estava instalando o verdadeiro Reino de Deus, o Mestre operava portentos para mostrar que era o vencedor das forças que oprimiam os seres humanos: vencia a doença (Mc 3,23-28), a opressão da Lei (Mc 2,23-28), as forças descontroladas da natureza (Mc 4,35-41), os diversos espíritos, tidos como causadores de mal-estar (Mc 5,1ss), a morte (Mc 5,21ss), a fome (Mc 6,35-44); o vencedor do pecado, numa palavra.
Em João, Jesus não anuncia o Reino, mas a si mesmo. Usa a célebre expressão: ego eimi (eu mesmo), que é o nome de Deus: “o que é”. Mais que para identificar-se, a expressão ocorre para revelar sua divindade, como foi quando de sua prisão: Jo 18,4-6. Nessa mesma linha se revelava como o caminho, a verdade, a vida (Jo 14,6), a luz (Jo 8,12), o pão: Jo 6,41. Operava sinais para melhor se revelar: curou o cego para revelar-se como a luz do mundo (Jo 9,1ss); deu de comer aos famintos para que o acolhessem com o pão (Jo 6,1ss), curou o paralítico para mostrar que era o caminho (Jo 5,1ss), ressuscitou Lázaro para deixar claro que era a verdadeira vida: Jo 11,1ss.
Como Aquele que é, revelou ser o tronco do qual vem toda vitalidade: Jo 151ss. Sem estar nele vinculado, ninguém produz coisa alguma, ninguém tem vida. É dele que procede toda seiva vital. Demonstrou ser o Bom Pastor, o que dá a vida pelas suas ovelhas. Como tal, vai ao encalço da ovelha perdida: Jo 10,1ss. Sem ser conivente com o pecado, defendia e acolhia os pecadores: Jo 8,1ss. Colocou sua vida em defesa dos esquecidos, dos marginalizados, dos pobres, dos perseguidos. Esses constituíam a parte eleita do Reino: Lc 6,20ss.
As Escrituras revelam o Senhor, não somente como Aquele que veio dos céus, mas que o fez em benefício dos seus, para que se tornassem filhos de Deus: Jo 1,11-14. Para tanto, fez-se em tudo semelhante aos humanos, menos no pecado: Hb 4,15. Por isso, esvaziou-se, aniquilou-se, abateu-se, humilhou-se: Flp 4,6ss. Sendo rico se fez pobre para nos enriquecer por meio de sua pobreza: 2Cor 8,9. Sendo divino se humaniza para nos divinizar, sendo santo se faz maldito (Dr 21,22-23), para nos tirar da maldição.
Resumindo, o Senhor que revelou o amor do Pai para conosco (Rm 8,32), igualmente, amou-nos até o fim: Jo 13,1. Cancelou todos os mandamentos deixando apenas o do amor aos seus discípulos: Jo 15,9-13. Essa mensagem ele sintetizou no ato de lavar os pés de seus discípulos, o que merece algum aprofundamento: Jo 13,2ss.
Levantar-se da mesa | “deixar” o paraíso |
Depor as vestes | “abandonar” a divindade |
Cingir-se com a toalha | Assumir a natureza humana |
Derramar água na bacia | Abraçar o “lagar” da Paixão |
Lavar os pés dos discípulos | Servir os irmãos |
Retomar as vestes | Revelar-se ressuscitado |
Voltar à mesa | Voltar glorificado ao Pai |
Cristo “latente” no Primeiro Testamento, se revela no Segundo. E promete uma presença constante entre os seus: Mt 28,20. Professamos essa ao confessarmos: ele está no meio de nós. Ele se faz de modo especial presente quando nos reunimos em seu Nome: Mt 18,20. E a presença de Deus é sempre salvífica. O Senhor se faz presente, agora, em nossos dias, nas pessoas dos pobres, dos carentes dos abandonados: Mt 25,31ss.
O Mestre continua vivo e palpitante nas hóstias consagradas. A nós nos é dada a grande graça de convivermos com ele, mais íntima e profundamente que tantos de seus coevos. Agora, ele nos chama para o ministério de fazer com que seja comunhão com tantas pessoas, a começar pelos que estão impossibilitados de sair de suas casas. É um meio de irradiar Cristo entre tantos irmãos. Que esses momentos de graça sejam profundamente assumidos, profundamente vivenciados, profundamente irradiados. Que nosso espírito seja o do Centurião: o de reconhecer a própria indignidade, mas estar aberto a receber o Senhor: Lc 7,6. É essa uma das maneiras de fazer o Cristo anunciado no Antigo Testamento, vivo no Novo, presente, agora, por meio de nosso apostolado.